CECILIO

Sobreviver sem ser vivido

18/10/2013 às 08:59.
Atualizado em 26/04/2022 às 04:47
ig-cecílio (AAN)

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Há acontecimentos e pessoas de tal forma marcantes em nossas vidas que se torna quase impossível deixar de esquecê-los. São muitos e muitos com os quais aprendi, mesmo quando os exemplos foram negativos. Três deles, no entanto, foram-me de tal forma especiais que permanecem vivos em minhas lembranças. E lembram lições que não devo repetir ou imitar.Eram grandes amigos. Dois deles muito mais velhos do que eu. E o outro, mais jovem. O que os unia era a paixão pelo dinheiro, verdadeira obsessão. Não tiveram outra vida senão a de acumular, enricar, a busca de sempre ter mais. Parecia-me algo doentio, mas eu não me sentia no direito de dar-lhes minha opinião, a não ser uma que outra observação.O mais rico deles — homem poderoso e conhecido em todo o País por seu poder empresarial — morava quase ao lado de meu antigo jornal. Quase toda noite, já beirando a madrugada — pois os jornais “fechavam” a edição a altas horas — ele ia à redação conversar. Não conseguia dormir. E, nos seus últimos meses, estava bebendo de dois a três litros de uísque por dia.Certa madrugada, ele não foi ver-nos, mas me telefonou desesperado: precisava conversar, estar com alguém. Fui vê-lo e era um homem enlouquecido. Tirava todas as roupas e gritava de medo de os filhos e netos morrerem de frio e de fome, apesar de todos os seus bens. Num Domingo de Páscoa, esse homem acordou, banhou-se, barbeou-se, vestiu-se como se para uma festa solene. E deu um tiro no ouvido.O outro amigo, também mais idoso, havia enriquecido de maneira impressionante. E não se fartava. Queria mais, cada vez mais. E não era apenas dinheiro, mas mulheres, farras, aventuras. Onde houvesse cheiro de dinheiro, lá estava ele desesperadamente em busca de encontrá-lo. A esse — também assíduo frequentador da redação — eu apenas falava: “Você vai morrer rico, amigo. Que pena”. Ele nada dizia até que, um dia, um câncer fatal o abateu. Ele não vivera, não vira os filhos crescerem, perdera o respeito da mulher. Então, ao final, me perguntou: “O que você queria dizer ao falar que eu iria morrer rico?” Não respondi. E ele se foi. Rico.O mais jovem destes meus três amigos era um gênio financeiro. Trabalhador, inquieto, insatisfeito, já com grande fortuna amealhada. Fomos, minha mulher e eu, padrinhos de seu casamento. Preocupávamo-nos com a ausência dele em relação à mulher e filhos. E, então, resolvemos convidá-los para nos acompanhar a um final de semana em Ubatuba. Ele concordou, sabendo que iríamos para um lugar pacífico, paradisíaco. Na véspera, porém, telefonou-me: não poderia ir, pois tinha muito trabalho para fazer no final de semana, inclusive em outra cidade.Fomos, minha mulher e eu, a Ubatuba. E, numa esplêndida manhã de sol e de céu iluminado, lá me vi, eu, dando braçadas no mar, enchendo os pulmões de alegria vital. Ao olhar para a praia, vi um grupo de pessoas fazendo-me sinais, gesticulando. Míope, eu enxergava apenas vultos. Retornei à praia nadando e, então, deparei com minha mulher em prantos. Recebêramos um telefonema: meu amigo morrera, na cidade onde fora trabalhar, sozinho em um apartamento de hotel.Essas coisas aconteceram há mais de 20 anos. Pensávamos fossem tempos confusos. As pessoas já se haviam tornado apenas sobreviventes, pois começavam a renunciar ao dom e à graça de viver. Sobreviviam sem nunca ter vivido. Cheguei — com muita esperança — a acreditar fosse uma transição, “frisson” passageiro. Mas enganei-me, pois tudo piorou, apesar das formidáveis conquistas tecnológicas, dos feitos quase milagrosos da ciência. Perdeu-se a arte e a sabedoria de viver; ganhou-se a ciência e a técnica de sobreviver.As lições acompanham-me ainda hoje. Mas aprendi outras que podem não interessar a ninguém, mas que me fazem estar vivo. O tempo humano é curto demais. Mas pode trazer cansaços infinitos, o cansaço das inutilidades, do desnecessário, do fútil, do tolo. Logo, se curto é o tempo, há que se dar fim a papéis equivocados. Pois eles não têm mais sentido. As horas passam a ser verdadeiras. O amanhã é apenas uma possibilidade. E o hoje deve ser vivido como um presente do ontem que se foi.A verdade se instala quando o conflito se define, quando há rendições. Ou, então, quando se chega ao grande acordo, o armistício após a guerra tanta, no descanso de um sossego pelo menos provisório. Corpo e alma, então, deixam de brigar. E tornam-se plenos, milagre de espantar: alma é corpo, corpo é alma. E nenhum é o outro. Por isso, não há sobreviventes se, antes, não tiverem vivido. Serão, apenas, mortos vivos. E estão aí, perambulando pelo mundo...

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