ZEZA AMARAL

Saudades domingueiras

26/04/2022 às 00:30.
Atualizado em 26/04/2022 às 00:30
Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

A infância é muito grande. Cabe tanta coisa nela que mais parece aquele armário da cozinha da mãe, guardando velhas panelas, geleia de mocotó e chineladas.Tive em muitas manhãs conversas com a minha mãe. Adulto, chegava em sua casa dormida, tomava um banho e silenciosamente entrava em um dos quartos vazios de filhos, perdido pelo cansaço de tantas serestas e madrugada. E o cheiro do café coado no pano embelezava as narinas da sua casa. Saia da cama e abraçava a minha mãe, tão pequenina, do jeito que o meu pai sempre fazia. Havia anos que o meu pai se fora — e hoje me vejo mais velho que o meu pai. Não sei se o raro leitor me entende nesse abraço. Minha mãe ficava aguardando o leite ferver e o meu pai a abraçava pela cintura, beijando os seus lisos cabelos negros. Era bom vê-lo abraçando-a com tanta ternura, quase dança, ele que era um homem sério, sisudo, e, assim, brincando de namorar.Domingo e a casa da minha mãe não tem mais filho. Já não tem mais mãe e nem pai. Já não tem mais nem as violetas que ela tanto cultivava. É apenas uma casa perdida na lembrança, numa rua quase esquecida do Taquaral, onde tantos amigos nasceram, cresceram e partiram para a grande aventura da vida.Tempos atrás, ainda menino de casa cheia de irmãos e alegrias e dores, eu ajudava a minha mãe a cortar o macarrão na máquina. Ela punha a massa entre os roletes e eu girava a manivela. Ela tinha um jeito carinhoso de segurar as tiras do macarrão por sobre o braço e deixá-las descansar num canto da mesa de tábua lavada, polvilhando-as com uma fina camada de farinha de trigo. Quanto carinho ganhou o meu pai por abraços aprendidos em tantos domingos. Abraços de macarrão. E eu ia aprendendo tudo aquilo, fazer o alimento, aprendendo a beijar cangote e arrumar a mesa com muitos talheres, pratos e copos.A vida é simples e muito grande. Cabe de tudo dentro dela.Anos depois, ou algum tempo atrás, fiquei proseando com os violeiros Clayton Roma e Levi Ramiro, hoje quase irmãos que ganhei pelo ventre da música e caipirice. Conversa de caipira tivemos. E a prosa foi boa, de muita elegância e sustança vivida. E isso de prosa proseada aprendi com o meu pai, com os seus amigos, pelas manhãs domingueiras do Taquaral. Vez ou outra, ele me levava ao armazém do seu Furian, na rua Paula Bueno, e os homens ficavam falando de futebol e política. Eu me encostava num canto, sentado em cima de uns engradados de cerveja, e ficava ouvindo conversas estranhas e sempre elegantes. Dali a pouco, ele me entregava uma sacola cheia de mantimentos e me mandava pra casa. E lá ia eu descer a ladeira da Vilagelin Neto, orgulhoso, me fazendo de homem e aguentando a dor da sacola no ombro.Hoje não tenho pai nem mãe; nem três irmãos, um filho e duas companheiras, que o mundo é um bestão sem eira nem beira de perdas, e de tantos compromissos de paixões e sofrimentos. E não tenho mais lugar para aprender alguma coisa no mundo que preste. O que muito me entristece, devo dizer, pela involuntária arrogância.Hoje acontece mais um domingo. E não tenho mãe para fazer macarrão e nem pai para me dar uma sacola pesada para espiar o meu orgulho. Em algum lugar ficou o abraço do pai na mãe. Ela dizendo que tinha filho por perto e, ele, dizendo que carinho se aprende em casa. De todas, foi a melhor lição, e é o que ando levando pelos domingos inteiros da minha vida.Qualquer domingo é dia de macarrão e mãe. E toda tarde domingueira é dia de mãe fazendo crochê e aguardando um bolo amadurar no forno. Todo dia e toda a noite é um lembrar de mãe e buscar a sua benção. Todo dia é um querer de ver o pai abraçando a mãe pela cintura. Dizem os acadêmicos da vida (ou seria da morte?), os filósofos e críticos, que isso é coisa da simples lembrança e de pouca sustança literária. Eu digo que isso é apenas uma crônica de saudade; ou seja: a última notícia que tenho deles, pois é isso é o que é a saudade — como bem ensinou o saudoso jornalista e poeta Oswaldo Guilherme. E dele agora recebo outra notícia. E isso é uma visita que vale outro brinde à vida.Bom dia.

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