Fico repreendendo-me a mim mesmo — e cada vez mais seriamente — diante de uma pavorosa sensação que me alfineta a alma. É quase uma intuição. E tenho receio de vê-la tornar-se certeza. Pois começo a perceber o fim também dos cemitérios. E os vejo transformados, pouco a pouco, em novos espaços de especulação imobiliária, tumbas, túmulos, jazigos transfigurados em apartamentos ou salas comerciais. Tomara seja alucinação minha, mas já me convenço de isso ser possível. E economicamente interessantíssimo para empreiteiros.Enterrar os mortos queridos foi, como se sabe, um dos primeiros sinais de que o primata começava a se tornar humano. Antes do primeiro sepultamento, os cadáveres ficavam expostos ao sol, à chuva, aos abutres. À medida da revelação do humano, a descoberta do mistério levou ao sagrado. Logo, parece impossível — pelo menos para mim — separar o humano do sagrado, apesar do profano que também é parte dele. Não à toa, cemitérios foram chamados de campos santos, mansão da morte, Gólgota, necrópole, adro dos defuntos, última morada. E memento mori, a advertência para nos lembrarmos de sermos, todos, mortais.Mas aí está, penso eu, o fulcro da questão: quase mais ninguém acredita na morte. Ou, então, a morte passou a ser vista como um fato corriqueiro na ordem das coisas naturais. É uma possibilidade, uma hipótese, por que não? Mas tornaria a vida humana também corriqueira e sem grande importância, um acontecimento qualquer. Quem não se importa com a morte, também não se importa com a vida. Ambas passam a ser fatos banais. E isso, evidentemente, justifica a banalização e a vulgarização de tudo. Sei lá eu, mas essa febre pela cremação dos cadáveres não estaria ligada à pressa de se desfazer de tudo, a mesma pressa com que nos desfazemos da própria vida? Lançar um corpo ao crematório é, convenhamos, muito mais prático. Acabou, acabou. Seria isso?Aliás, é quase impossível — nessa banalização de tudo, nessa perda do sagrado — não lembrar de Shakespeare, no 'Hamlet', quando diz: “Alexandre morreu, Alexandre foi sepultado, Alexandre voltou ao pó. O pó é terra e com a terra se faz argila: por que a argila em que ele se transformou não poderia vir a ser a tampa de um barril de cerveja?” Não conheço pai ou mãe que fizesse, dos restos de seu filho morto, um objeto de utilidade prática e comercial. Ou das cinzas do ente amado, um pó para lustrar panelas.No mundo do espetáculo e das futilidades, a morte não existe a não ser como estraga prazeres. Por isso, o espetáculo é rápido, superficial, descartável. Não se sabe quando a morte vem, mas sabe-se que o espetáculo terá fim. Portanto, “edamus, bibamus, gaudeamus!” — comamos, bebamos, folguemos. E isso até poderia ser um sinal de sabedoria, no sentido de viver com alegria o tempo presente. Mas, desde os antigos romanos, tinha o mesmo significado de orgia que agora revivemos. Ora, se nada há depois da morte — ou se a própria morte não mais existe — por que não cair na esbórnia e repetirmos a festa dos faraós, dos imperadores romanos, de Sodoma, de Gomorra? Por que não?A maior sabedoria humana, talvez, esteja na correta compreensão de que vida e morte são inseparáveis, uma permanente tensão entre duas forças contrárias Não, apenas, como um fato de simples ordem natural. Mas, também, de ordem transcendental. É o mistério. E, por serem amedrontadores, mistérios fazem com que os homens evitem conviver com eles. O mais fácil é fingir ignorá-los. Ou tentar fugir deles.Quando se esquece da morte, esquece-se, também, da vida. Imaginemos um prato com delicioso manjar. Quem não se preocupa com a finitude dele, come-o apressadamente, engole-o, empanturra-se. Não tem, pois, importância que acabe, desde que se possa comê-lo até saturar-se. É o “gourmant”. No entanto, um outro — sabendo que o manjar é limitado — saboreia-o suavemente, desgusta-o prazerosamente. Sabe que irá acabar, por isso, valoriza-o. É o “gourmet”. Entre a vida e a morte, há esse prato de manjar privilegiado, servido indistintamente para “gourmants” e “gourmets”. Cada um faz sua escolha.O ser humano é o único — de todos os seres vivos — que sabe que irá morrer. E, no entanto, faz de conta que a morte não existe. E isso tem nome: covardia de viver. “Dia de Finados” não deveria servir para se pensar nos mortos. Mas para se refletir sobre a vida. E, enquanto ainda houver cemitérios, eles serão, também, os raros templos de reflexão, de silêncio, de saudade mas, também, de gratidão. Podem ficar sem visitantes, mas estarão, sempre, à espera. De quem vai e volta. E de quem vai e fica.