A ministra determinou a suspensão integral e imediata da distribuição de emendas de relator até o final de 2021 - a falta de transparência do dispositivo foi a brecha encontrada pelo Palácio do Planalto para utilizá-lo na compra de votos
A ministra também ordenou que o governo dê "ampla publicidade" aos ofícios encaminhados por parlamentares em 2020 e 2021 para alocação dos recursos em seus redutos eleitorais (Divulgação)
A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu manter suspensos os repasses do orçamento secreto - esquema de sustentação do governo Jair Bolsonaro no Congresso , revelado pelo Estadão. Com placar final de 8 votos a 2 proclamando nesta quarta-feira, 10, a Corte ratificou a decisão em caráter liminar expedida na sexta-feira, 5, pela ministra Rosa Weber. O julgamento abre uma nova crise entre o Supremo, o governo e o Congresso.
Desde maio, há exatos seis meses, uma série de reportagens do Estadão vem mostrando como os recursos da União têm sido distribuídos por meio das emendas de relator do Orçamento - as chamadas RP-9 - sem critérios técnicos, a um grupo de parlamentares, principalmente às vésperas de votações de interesse do Palácio do Planalto. Trata-se da nova fisionomia da política do "toma lá, dá cá", usada pelo governo em troca de apoio no Congresso.
O julgamento desta terça-feira, 9, foi permeado por pressões de parlamentares beneficiados pelo esquema. O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), tido como principal operador da distribuição de emendas de relator-geral do orçamento, chegou a ir ao Supremo na segunda-feira, 8, para conversar com o presidente da Corte, Luiz Fux, na tentativa de derrubar a liminar da ministra. A decisão do colegiado mina o poder de controle e negociação de Lira.
Na decisão ratificada pelo plenário, Rosa determinou a suspensão integral e imediata da distribuição de emendas de relator até o final de 2021 - a falta de transparência do dispositivo foi a brecha encontrada pelo Palácio do Planalto para utilizá-lo na compra de votos. Os valores destinados a esta modalidade neste ano somam R$ 18,5 bilhões.
A ministra também ordenou que o governo dê "ampla publicidade" aos ofícios encaminhados por parlamentares em 2020 e 2021 para alocação dos recursos em seus redutos eleitorais. Para isso, ela exigiu a publicação de todos os pedidos "em plataforma centralizada de acesso público".
Como revelou o Estadão, o governo liberou R$ 1,2 bilhão em recursos do orçamento secreto para garantir a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios em primeiro turno na Câmara. A alteração no texto constitucional abrirá espaço no teto de gastos mediante atraso no pagamento de dívidas da União reconhecidas na justiça para viabilizar a implementação do novo programa social substituto do Bolsa Família, o Auxílio Brasil.
"Causa perplexidade a descoberta de que parcela significativa do orçamento da União Federal esteja sendo ofertada a grupo de parlamentares, mediante distribuição arbitrária entabulada entre coalizões políticas, para que tais congressistas utilizem recursos públicos conforme seus interesses pessoais, sem a observância de critérios objetivos", escreveu a ministra em sua decisão de 49 páginas.
O julgamento no plenário virtual - plataforma em que os ministros depositam seus votos à distância, sem discussão detalhada - teve início na madrugada desta terça e será encerrada às 23h59 de quarta-feira, 10. Restam os votos de quatro ministros. Rosa Weber seguiu o tom adotado no despacho e proferiu um voto contundente, com recados duros aos responsáveis pelo esquema.
"Tenho para mim que o modelo vigente de execução financeira e orçamentária das despesas decorrentes de emendas do relator viola o princípio republicano e transgride os postulados informadores do regime de transparência no uso dos recursos financeiros do Estado", afirmou. O mérito da ação ainda não foi analisado no julgamento.
Logo nas primeiras horas de julgamento, Rosa foi acompanhada pelos ministros Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia, que também se incumbiu de responder com firmeza à falta de transparência do orçamento secreto. A ministra afirmou que o controle dos recursos públicos "não pode ser escamoteado nem esvaziado pela sombra a impedir a garantia da transparência na gestão pública".
"A utilização de emendas orçamentárias como forma de cooptação de apoio político pelo Poder Executivo, além de afrontar o princípio da igualdade, na medida em que privilegia certos congressistas em detrimento de outros, põe em risco o sistema democrático mesmo", afirmou Cármen Lúcia.
"Esse comportamento compromete a representação legítima, escorreita e digna, desvirtua os processos e os fins da escolha democrática dos eleitos, afasta do público o interesse buscado e cega ao olhar escrutinador do povo o gasto dos recursos que deveriam ser dirigidos ao atendimento das carências e aspirações legítimas da nação", completou.
Ao Estadão, Barroso disse não ter apresentado seu voto por escrito por acreditar que "os argumentos estavam bem postos" na manifestação da relatora da ação. Na manhã de terça, o ministro Edson Fachin juntou seu voto à maioria, seguido pelos colegas Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes. O presidente do STF, Luiz Fux, e o ministro Dias Toffoli também seguiram a relatora nesta quarta e optaram por não incluir seu voto por escrito.
O ministro Gilmar Mendes, primeiro a divergir parcialmente da relatora, encaminhou seu voto a favor da liberação das emendas de relator, desde que seja "assegurado amplo acesso público, com medidas de fomento à transparência ativa, assim como sejam garantidas a comparabilidade e a rastreabilidade dos dados referentes às solicitações/pedidos de distribuição de emendas e sua respectiva execução".
Segundo Gilmar, os valores utilizados no esquema do orçamento secreto "são recursos destinados à construção de hospitais, à ampliação de postos de atendimento ou a quaisquer outras finalidades de despesa primária que podem ser destinados a todas as unidades federativas nacionais e que terão sua execução simplesmente paralisada" até o julgamento do mérito da ação.
"O congelamento das fases de execução dessas despesas se afigura dramático principalmente em setores essenciais à população, como saúde e educação", escreveu. "A manutenção da medida cautelar deferida nesses termos seria mais prejudicial aos bens jurídicos tutelados do que o próprio estado de inconstitucionalidade subjacente ao manuseio das emendas do relator", argumentou em outro trecho.
O ministro Kassio Nunes Marques abriu uma nova tese argumentativa em seu voto hoje. Classificado pelo presidente Jair Bolsonaro como seus '10%' dentro do STF, o magistrado propôs que o Congresso 'aperfeiçoe a tramitação das normas orçamentárias' somente em 2022.
Segundo Nunes Marques, embora o orçamento secreto represente 'contrariedade aos princípios da transparência e da publicidade', é necessário que os repasses empenhado em 2020 e 2021 sigam valendo, pois, 'ainda que passíveis de críticas, atenderam às normas vigentes'.
A pressão exercida pelo Congresso, embora fracassada, estimulou articulações na Corte. Era esperado que uma proposta alternativa fosse levada ao plenário com o intuito de manter as obrigatoriedades de transparência nos repasses via emendas de relator, mas não de suspender o mecanismo. Com o fim do principal instrumento de coalizão do governo, os parlamentares articulam agora uma manobra para manter a ingerência sobre os recursos da União.
Como mostrou o Estadão, integrantes da Comissão Mista do Orçamento (CMO) estudam abrir mão das emendas de relator - comprometidas pela decisão da ministra - para focar no incremento dos valores distribuídos pelas emendas de comissão, um mecanismo pouco utilizado, mas que mantém o caráter prioritário para os envolvidos no orçamento secreto: a falta de transparência oriunda da impossibilidade de identificar os responsáveis pelas indicações. A solução, porém, divide o grupo.
As emendas de comissões são indicadas pelos relatores dos 39 colegiados temáticos da Câmara e do Senado. Os recursos deste dispositivo são coletivos e não exigem a identificação do autor da proposta. Dessa forma, o grupo seria responsabilizado pelos repasses em vez dos parlamentares que os viabilizaram.