Protesto em São Paulo em 2024 contra projeto de lei que restringe possibilidades de aborto legal; em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que também é legal interromper a gestação quando o feto tem anencefalia (ausência parcial do encéfalo e do crânio) (Paulo Pinto/Agência Brasil)
No Brasil, o primeiro projeto de lei relativo ao aborto foi apresentado ao Congresso Nacional em 1949. A proposta restringia o direito de as mulheres interromperem a gravidez.
Pelo Código Penal, em vigor desde 1940, somente era permitido o aborto nos casos de gravidez por estupro e de risco de vida para a gestante. O projeto em questão retirava essas duas possibilidades, estabelecendo a proibição total do aborto no país.
A proposta de 75 anos atrás foi redigida por um deputado federal, o monsenhor Arruda Câmara (PDC-PE). Na visão dele, os dois tipos de aborto legal desrespeitavam "a moral católica do povo brasileiro" e abriam a porta para "todos os outros atentados à vida do nascituro".
Os deputados, no entanto, nem chegaram a discutir o tema. O projeto do padre foi engavetado sem passar por nenhuma comissão da Câmara.
Quem identificou o projeto de lei pioneiro foi Maria Isabel Baltar da Rocha Rodrigues, feminista, socióloga e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) falecida em 2008.
De acordo com a pesquisa dela, foram 18 as propostas relativas ao aborto apresentadas à Câmara e ao Senado entre 1946 e 1983 - a maioria contrária à interrupção da gravidez.
Apenas em 1971, no auge da ditadura militar, o Senado tratou do tema pela primeira vez. A discussão foi deflagrada pelo senador governista Vasconcelos Torres (Arena-RJ), que escreveu um projeto de lei prevendo a ampliação dos casos de aborto legal.
O projeto estabelecia a legalização do aborto para três novas situações, além das duas já previstas no Código Penal: gestação resultante de incesto (sexo entre irmãos ou entre pais e filhos), risco de o bebê nascer com deficiência física ou mental e grave ameaça à saúde da mãe.
"Tais medidas contribuirão para reduzir as tristes estatísticas de mortes provocadas pela ação ineficiente, incapaz e mesmo criminosa de grande número de parteiras curiosas - argumentou o senador, referindose aos abortos clandestinos, executados por pessoas sem capacitação."
"A sociedade vive um processo dinâmico", continuou Vasconcelos Torres. "Há sempre que reformular o que arcaico vai ficando."
O senador afirmou que a ideia central do projeto partiu de médicos ginecologistas e obstetras. Ele fez questão de frisar que não se tratava da legalização total do aborto - devaneio, segundo ele, de indivíduos "exagerados".
Os debates duraram exatamente um mês. Apresentado em 27 de outubro de 1971, o projeto de Vasconcelos Torres passou por duas comissões do Senado. Na Comissão de Constituição e Justiça, o relator foi José Sarney (Arena-MA). Na Comissão de Saúde, Adalberto Sena (MDB-AC). Ambas o rejeitaram. Foi engavetado em 26 de novembro, sem chegar ao Plenário.
O argumento foi o de que, como a ditadura havia criado em 1969, com o Congresso Nacional fechado por força do Ato Institucional nº 5 (AI-5), um Código Penal que ainda receberia contribuições do Senado e da Câmara, o mais sensato seria fazer mudanças no aborto legal durante esse processo.
O Código Penal da ditadura, contudo, jamais entrou em vigor. A lei criminal de 1940, com alterações, vale até hoje.
A psicanalista Margareth Arilha, que é doutora em saúde pública e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Unicamp, explica que até meados dos anos 1970 o debate público sobre o aborto foi monopolizado pelos homens.
"Não se permitia a participação da mulher. Ela era mantida numa condição de submissão e como um ser não portador de direitos e, sobretudo, de desejos. O patriarcado era ainda mais forte e hegemônico do que é hoje."
Segundo Arilha, o interesse masculino estava acima do feminino até mesmo naquele projeto de lei do senador Vasconcelos Torres: "Ao permitir o aborto da mulher que engravidou após uma relação incestuosa, quem está sendo protegido é, na verdade, o homem que estuprou a irmã ou a própria filha. É interesse dele que o bebê não nasça. Essa é a mesma lógica que o projeto segue ao também liberar o aborto quando o bebê pode nascer com deficiência mental ou física. Afinal, os filhos gerados em relações consanguíneas têm chances mais altas de nascer com alterações genéticas."
Em 1974, o general Ernesto Geisel chegou ao Palácio do Planalto como o quarto presidente da ditadura militar e prometeu que começaria a transição de volta para a democracia de maneira "lenta, gradativa e segura".
Os movimentos sociais - os feministas entre eles - então puderam se organizar para lutar pelas demandas até aquele momento reprimidas pelos militares.
A pressão de organizações de mulheres fez o divórcio, as estratégias de planejamento familiar e o aborto entrarem com força na pauta pública.
Foi nessa conjuntura efervescente que o Senado e a Câmara dos Deputados aprovaram em 1977 a Lei do Divórcio e em 1979 a liberação da propaganda de métodos contraceptivos. A partir desta segunda lei, o governo brasileiro enfim deu início às políticas públicas de planejamento familiar.
O aborto, no entanto, não teve o mesmo respaldo. Do Senado, saíram vários discursos de repúdio à ampliação dos casos de aborto legal.
Em 1977, o senador Benedito Ferreira (Arena-GO) lamentou: "Na pátria do catolicismo, querem legalizar o aborto. Não há crime mais hediondo e covarde do que o perpetrado contra uma criança. É muito triste que a criança, ainda no ventre de sua mãe, tenha cerceada a oportunidade que lhe é dada por Deus de vir ao mundo."
Em 1982, depois de apresentar um projeto de lei que buscava facilitar a adoção de crianças abandonadas, a senadora Laélia de Alcântara (PMDBAC) leu um manifesto: "Pelo seu alto alcance social, cristão e humanitário, desejo dar ciência do manifesto ao Senado e ao país: Temos como pedra de canto do nosso movimento a defesa da vida a partir do ventre materno, pois uma criança em estágio embrionário que possa vir a ter a sua vida interrompida pelo aborto é, sem sombra de dúvida, uma criança abandonada. A sede da vida, que é o ventre materno, não pode ser impunemente violada".
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