Peregrinos contam sobre a experiência de percorrer os caminhos religiosos, sobretudo o Caminho da Fé (Erasmo Ballot)
Ao percorrer as rodovias da região, não é raro avistar peregrinos caminhando no acostamento com mochila nas costas, terço e cajado nas mãos. Há também o que não se pode ver de longe, como fé e determinação. Algumas pessoas preferem caminhar sozinhas, outras gostam da companhia de amigos ou familiares e se organizam em pequenos grupos, mas há também aquelas que seguem “em bando”.
Em outubro, essa movimentação costuma aumentar, visto que muito devotos escolhem o mês para se dirigir até o Santuário Nacional de Aparecida, no Vale do Paraíba. Entre as diversas rotas que possibilitam esta experiência está o Caminho da Fé, que parte de Águas da Prata e termina em Aparecida. Existem diversos ramais, mas este trecho original de 318 quilômetros que passam por áreas rurais e urbanas e com muitas subidas e descidas, é o mais percorrido.
Mas esta não foi a primeira vez que eles vivenciaram esta experiência tão intensa. Lima já tinha ido com o irmão em 2016 e com a esposa em 2019. Além disso, sempre que podem, os dois percorrem outras rotas menores como o Caminho da Prece, que sai de Jacutinga e chega em Borda da Mata, MG. “Na primeira vez, bolhas disputavam vaga em meus pés, mas fui aprendendo uns truques. Desta vez, não tive nem uma bolha”, revela Lima.
Ele ressalta que o Caminho da Fé foi baseado no Caminho de Santiago, na Espanha, e é muito bem estruturado. “É todo demarcado, tem setas indicativas nas bifurcações e a cada dois quilômetros há indicação da distância até a Aparecida”. No entanto, requer planejamento e preparo físico e mental. “A parte mental é 70% da caminhada. É importante saber que vai ter algum sofrimento, o pé, o joelho e as pernas vão doer, vai faltar ar nas subidas, vai ter chuva, calor. Quando você absorve essas possibilidades, você está preparado”, ressalta o experiente peregrino que alerta: “achar que é um passeio é um equívoco”.
De acordo com a Associação dos Amigos do Caminho da Fé (AACF), o trajeto recebe, em média, 1.200 peregrinos por mês. Somente em 2021 passaram por lá 15.576 pessoas. Desde 2015 é registrado um crescimento de 32% ao ano e se considerado os 19 anos de existência da rota, já foram contabilizadas 72 mil pessoas que a percorreram, sendo 56 mil únicos, ou seja, que foram pela primeira vez.
As surpresas do caminho
O casal de aposentados Elza Maria Galdiano de Lima Jacinto, de 60 anos, e José de Lima Jacinto, de 63, sempre foi adepto de caminhadas e agora acabou de voltar de mais uma peregrinação. Foram 13 dias em que passo a passo, ancorados com cajados, uma mochila leve nas costas e água, eles percorreram o Caminho da Fé e chegaram em Aparecida. O motivo desta vivência foi o agradecimento. Elza se curou de um câncer e Lima acabara de superar uma internação de quatro dias na UTI por um problema cardíaco.
Não faltam surpresas pelo caminho, sobretudo para quem tem o olhar atento às belezas da natureza que se revelam nos pássaros, nas plantas e nas paisagens. Não é só isso! “No percurso todo a gente ora, agradece, tem momentos de muita reflexão. E o mais surpreendente são as amizades. Saímos em três (contando com a companhia de uma sobrinha, que parou no quarto dia) e chegamos em um grupo de oito pessoas. Encontramos um senhor de 82 anos, o que prova que todos podem, mas o que mais marcou foi conhecermos um rapaz de Curitiba que fazia o trajeto descalço desde Mococa, pagando uma promessa. Detalhe: ele é dono de uma fábrica de calçados. Choramos todos juntos e vimos que a fé realmente move montanhas”, conta Elza.
Ela, que é mais emotiva, conta que a chegada, mesmo com chuva como aconteceu desta vez, é um momento muito especial. “Quando avistei a Basílica foi pura emoção. Nesse momento você se sente superando o seu limite, pois não é fácil.
Para chegar até Campos de Jordão, que tem relevo de quase 1.700 m de altitude, da mesma forma que você sobe, você desce. O caminho é uma busca e vale muito a pena. A gente volta para casa mais fortes, com mais fé, mais compreensivos e solidários”, diz Elza.
Novas peregrinações estão nos planos do casal: o Caminho de Santiago já os aguarda! As caminhadas diárias preparatórias já estão na ordem do dia!
Para a professora Valquiria Marino, a peregrinação é uma experiência muito válida e inesquecível, por isso ela aconselha a todos (Rodrigo Zanotto)
Um reencontro com si mesma
A professora Valquiria Marino, de 48 anos, fez uma peregrinação até Aparecida em outubro de 2021, motivada pela pandemia, pois a casa encheu novamente, com todos os membros em home office, inclusive ela com a necessidade de ministrar as desafiadoras aulas online.
Foi quando uma grande amiga, Cristina Verlengia, contou que faria a peregrinação junto com um grupo liderado pelos senhores Valdir Cremasco e Natal Avelino Silveira, que fazem tradicionalmente o percurso duas vezes por ano há mais de 30 anos. Enquanto Cris foi para pagar uma promessa, Val decidiu ir junto visando ter um encontro pessoal, um repensar e um aprendizado. “Considerei que ficar uma semana caminhando seria bom para pensar em toda a situação vivida, se reencontrar. Na verdade, eu queria achar uma nova versão da Valquiria, diferente daquela estressada com a casa cheia”.
A professora se integrou a um grupo de 92 pessoas. Mas dois meses antes da partida, elas se encontravam semanalmente em Sousas para os treinos, que eram caminhadas de 15 a 20 km. No dia de “pegar estrada”, os peregrinos todos uniformizados, com chapéu e cajado na mão, participaram de uma missa na Catedral às 7h, para então seguirem pelas margens da Rodovia Dom Pedro I até Itatiba e depois entrar na rota rural. As mochilas foram no caminhão de apoio. “O maior desafio não é chegar. É percorrer!”, afirma Valquiria.
Ela conta que acordar às 3h, tomar banho com água fria, caminhar embaixo de chuva com tênis enxarcado e dormir com 42 mulheres num mesmo quarto foram as principais adversidades. Todas superadas!
Se no começo pensar em chegar era inevitável, com o percorrer dos quilômetros ela aprendeu a focar nos desafios do dia, nas histórias com as quais se deparava e nos desapegos possíveis. “Há uma troca surpreendente. As estradas da vida se cruzam ali e você descobre que o seu problema foi pequeno perto do que o outro viveu. A história do outro me nutriu. Foi uma experiência rica e fortalecedora”, relata a professora, que recomenda a todos que façam essa peregrinação.
A fé das pessoas com quem o grupo cruzava pelo caminho foi algo também muito marcante e, ao longo da caminhada, alguns acontecimentos reforçavam esta condição. “Em um dia, caiu uma chuva torrencial com raios. Começamos a rezar o terço pedindo para que a chuva diminuísse, andamos mais cinco minutos e abriu o sol”, revela.
Identificando que o caminho percorrido é o caminho da vida, Valquiria entendeu ainda melhor que “a vida é breve, que o mais importante não é chegar, mas percorrer, e que é preciso escolher o que levar e o que deixar no percurso”.
Tomada pela inevitável emoção da chegada, a professora relata o momento como esplêndido, o que a faz pensar mais nos percursos do que na chegada. Após analisar a retrospectiva de tudo o que encarou e trazer isso para a vida, ela sentencia: “valeu a pena, eu faria tudo de novo”.
Lembrando a passagem bíblica em que Jesus e sua família seguiam em caravanas há longínquos dois mil anos, um hábito que não se perdeu com o passar do tempo, ela já planeja outras caminhadas de fé, inclusive também para Santiago de Compostela. Afinal, a fé alimenta as peregrinações.
PARA PLANEJAR A PEREGRINAÇÃO
Consulte o site: www.caminhodafe.com.br
O que não pode faltar: garrafa d’água, cajado (de preferência dois), chapéu ou boné, protetor solar, roupas e calçados bem confortáveis.