Cid Manicardi se dedica à produção de café especial no sítio em Sousas, onde mantém um cultivo sustentável (Kamá Ribeiro)
Consumir um bom café e saber sua história está se consolidando como uma tendência no Brasil. O movimento, que já é mundial, é feito por consumidores que não se contentam mais em apenas apreciar a bebida, mas querem saber o que há por trás dela, sua história e tipo de fabricação. E, nessa onda, as cafeterias estão se adaptando, buscando novos processos, inovando os métodos e instalando até mini torrefações para oferecer uma experiência sensorial intensa ao consumidor.
“O ritual de preparar um café de qualidade permite ao consumidor aquela pausa necessária para respirar e se recompor para a rotina corrida”, diz o especialista Joel Hardeman. Ele observa o consumidor atual mais curioso sobre o que tem por trás do grão, aquelas histórias que não se enxerga na xícara, mas se percebe no sabor diferenciado. Entre elas, se é produzido em um processo sustentável e as diferentes formas de extração e preparo, por exemplo.
E são esses detalhes no cuidado - que começa no campo e se encerra na bebida - que tornam o café uma experiência sensorial. Os baristas até brincam que “quando o consumidor olha para a cor da bebida já começa a desconfiar, pois está acostumado com o café tradicional bem preto e amargo. E, via de regra, se surpreende com a bebida clara (em função da torra mais leve) e intensa”. “E aí começa a experiência, ao perceber no sabor o toque achocolatado, amendoado ou cítrico que cada tipo de grão tem, que até dispensa o açúcar”, conta Joel.
Depois de trabalhar na área financeira da indústria automobilística por muitos anos, ele decidiu abrir seu próprio negócio e passou um ano em Vancouver, no Canadá, trabalhando como barista e aprendendo técnicas de torrefação. Na volta ao Brasil, planejou a abertura de uma cafeteria batizada com o ano em que o café chegou ao Brasil: 1727. É um local com muitas histórias para contar!
Um café campineiro
Campinas já era reconhecida como berço do café nacional pelo trabalho de pesquisa comandado pelo Instituto Agronômico desde sua fundação (1887). Essa tradição agora se renova com a concepção de um café 100% local, cultivado no distrito de Sousas em sistema familiar, orgânico e agroecológico, processado em mini torrefações também locais. O dentista e professor universitário Cid Manicardi, de 57 anos, começou a dividir sua paixão pela odontologia com o apelo rural quando se mudou com a esposa - a cantora e professora Isa Taube, de 57 anos - e as duas filhas para o sítio de 20 mil m2 em Sousas, em 2005.
Mesmo com o casal trabalhando na cidade, no sítio eram cultivadas verduras inicialmente e há 14 anos o café. Hoje ele colhe, apenas com mulheres, a segunda safra da nova varietal Arara. “Elas são mais cuidadosas com os grãos”, explica Manicardi. O sítio Flor da Lua (referência ao nome das filhas Flora e Luana) acabou criando um novo conceito de café: campineiro, orgânico, agroecológico, cujo manejo do solo regenera a vida e refloresta a região. Entre os pés de café cultivados no topo da montanha são plantadas árvores nativas para criar um solo mais fértil.
A varietal Arara - nome escolhido pela Fundação Prócafé – é nova, brasileira “e tem chamado a atenção pelas características sensoriais, muito doce, delicada, com uma acidez cítrica suave e se adaptou muito bem ao cultivo orgânico pelo vigor da planta”, explica o dentista-produtor. Essa paixão pelo café – adquirida na vida adulta – acabou unindo outros parceiros que trabalham com torrefação e, juntos, criaram o projeto Torra Campinas. Nela, esse café especial plantado por Cid Manicardi passa por torras diferentes conduzidas por Joel Hardeman e pelos irmãos Felipe e Gabriel Pine, unindo o resgate da importância da história cafeeira da região de Campinas e valorizando um produto 100% local.
Um direito de todos
“O café especial é um direito de todos”. Esse é o mantra recitado pelos gêmeos Felipe e Gabriel Pine, de 34 anos, que mantêm a paixão pela bebida como um projeto profissional paralelo às suas profissões. “É possível consumir um café orgânico, de qualidade, rastreado, produzido aqui na cidade, por um preço justo”, diz Felipe Pine, que realizou um sonho ao abrir uma cafeteria junto com seu irmão. Eles criaram um espaço intimista no centro da cidade “para receber clientes, bater papo, discutir sobre café, compartilhar boas experiências e sempre trazer referências para desenvolver o cenário da região em direção ao café de qualidade”, afirma Felipe. Por ter somente grãos puros e maduros e uma torra mais leve, a concentração de cafeína é menor, o que torna esse tipo de café mais saudável.
Apaixonados por café e buscando vivenciar novas experiências, eles compartilham o negócio mesmo vivendo em continentes diferentes. Gabriel mora na Espanha há dez anos, onde trabalha como designer de embalagem industrial. Felipe é publicitário e trabalhou vários anos na área comercial em São Paulo. Insatisfeito com a carreira, viajou com o irmão por vários países em um roteiro repleto de cafeterias diferenciadas. Na volta, com experiência e certificações internacionais, o plano de negócios – cafeteria, mini torrefação e consultoria em soluções - já estava na cabeça, mas teve uma gestação de três anos até nascer, em 2021. “Lá fora esse mercado é mais desenvolvido, mas o produto não é mais caro, esperamos que aqui no Brasil também evolua assim”, comentam.
Café com música
Você sabia que em todo o mundo há mais de 500 músicas que abordam de alguma forma o tema café? Pois quem garante é o músico e violinista Ernani Teixeira, de 48 anos, que por mais de dois anos mergulhou na pesquisa e catalogou essas referências, criando o projeto Musicafé. “De Sarajevo à Polinésia, podem ter certeza de que fui encontrar música sobre café nos lugares menos imagináveis”, conta. O resultado desta pesquisa tem orientado a criação de listas personalizadas nos canais de streaming, como o Spotify, e a montagem de espetáculos temáticos.
Em Campinas, em breve será divulgada a agenda do Projeto MusiCafé, com shows mensais que abordarão, em cada apresentação, estilos musicais diferentes (como jazz, MPB, música italiana e francesa, por exemplo) mas sempre com repertório focado no café. “Com a pesquisa, fui entendendo que as músicas retratam o modo de vida e trabalho dos povos em torno da cultura cafeeira, seus hábitos de consumo e suas metáforas”, explica. Só no Brasil foram mais de 180 composições resgatadas, nos mais diversos estilos e cantores. Um apanhado consistente, colorido, didático, divertido e saboroso que demonstra a importância cultural do café no Brasil e no mundo.
Coffee Lovers
A experiência de provar um café diferenciado bastou para que Julia Nogueira (foto acima), de 24 anos, repensasse sua carreira. A estudante do terceiro ano de Psicologia deu um tempo no curso e foi estudar para conhecer melhor os tipos de café e seus preparos. Nem bem se formou como barista e já foi chamada para trabalhar na cafeteria de uma livraria tradicional no centro da cidade. Agora, junto com o companheiro Renato Magalhães, de 25 anos, criou o @visitamosumcafe no Instagram, onde o casal dá dicas sobre cafeterias de Campinas e região.
“Cresci tomando café de prateleira (os vendidos em mercado), sempre com açúcar ou misturado com leite. Mas quando experimentei um café especial, meu conceito mudou, expandiu meu paladar”, relata. Ela conta que foi invadida por uma enorme curiosidade, por isso começou a pesquisar e experimentar em diferentes locais, experiência que passou a compartilhar nas redes sociais. “O café pra mim é como saudade de casa, aquela sensação boa de conforto e aconchego”, diz.
COMO FAZER UM ESPECIAL EM CASA
As cafeterias hoje comercializam cafés especiais em pó ou em grãos, mas, não adianta comprar se não preparar direito em casa. Existe um ritual recomendado para aproveitar ao máximo o aroma e o sabor. O primeiro passo é informar o tipo de coador que será usado para que a moagem seja adequada a ele. No caso do filtro de papel comum, comece escaldando-o com água quente, para eliminar impurezas. Coloque 2 colheres de sopa do pó para 300 ml de água. Não deixe a água ferver, desligue quando começarem a aparecer as bolhinhas e jogue a água suficiente apenas para molhar o pó. Aguarde 30 segundos para despejar o restante da água, sempre em movimentos circulares e devagar. A espuma que se formará é característica de café fresco e libera os aromas. O recomendado para cafés especiais é não usar açúcar.