COMPORTAMENTO

Maternidade sem culpa

Dilema: nos dias de hoje, esse sentimento parece estar diretamente associado à maternidade; mas é possível livrar-se dele?

Crislaine Coscarelli
crislaine.coscarelli@rac.com.br
12/05/2013 às 05:02.
Atualizado em 25/04/2022 às 16:54

Culpa por não dedicar o tempo que gostaria aos filhos, por não conseguir comprar tudo o que eles querem ou por algum comportamento “antissocial” que a criança apresente. Nos tempos atuais, é praticamente impossível desassociar da maternidade esse sentimento que pesa tanto na consciência feminina. “Na maioria das vezes é a própria mãe quem se questiona mais do que a sociedade”, afirma a professora do curso de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Rita Khater. Segundo ela, a mãe moderna assumiu inúmeras atribuições que não lhe cabiam no passado – ela agora ajuda no sustento do lar (isso quando não é a única fonte de provento), tem uma carreira, coordena não só a casa mas, muitas vezes, toda uma equipe profissional fora dela.

E para dar conta de tudo isso, acaba dedicando menos tempo aos filhos. “A maternidade não perdeu a sua força, mas a mulher de hoje tem também outros objetivos. Dedicar um tempo menor não significa que ela os abandonou. Interessa mais a qualidade do que a quantidade desse tempo dedicado. Não adianta a mãe estar em casa 24 horas por dia se passa mais tempo em frente ao computador ou falando ao telefone do que brincando ou conversando com os filhos”, opina Rita. Por outro lado, a mãe que opta por se dedicar exclusivamente aos rebentos, muitas vezes, sofre pressão da sociedade, enfrentando perguntas como “Você não trabalha?”. E se sente excluída, improdutiva até. “O importante é que a mulher tome a decisão por si só e não para agradar aos outros. Uma mãe sem realização pessoal é prejudicial tanto para ela quanto para os filhos”, aconselha a professora.

Foto: Janaína Maciel/AAN Uma crise com a babá do seu casal de gêmeos levou Yumi Costa a uma decisão radical: largar a bem-sucedida carreira de executiva em uma multinacional para começar do zero, abrir o seu próprio negócio e trabalhar em casa para se dedicar mais aos pequenos

A mente da mulher que é mãe funciona aceleradamente. Além de processar todos os cuidados com o pequenino e novo ser – que não são poucos –, tem os pensamentos invadidos por questionamentos como “Estou fazendo as escolhas erradas?” ou “O fato de querer manter uma carreira seria uma inversão de valores?”. Foi exatamente esse sentimento de culpa que perseguiu por um bom tempo a artesã Cristina Barbosa de Oliveira, mãe de três filhos, sendo Rodrigo o mais velho, hoje com 20 anos. No princípio, ela havia decidido dedicar-se totalmente à maternidade, mas mudou de ideia com o passar do tempo. “Fiquei em casa nos primeiros anos, mas queria muito trabalhar fora. Quando o Rodrigo completou quatro anos, fui fazer magistério e depois dar aulas. Foi o início da mudança”, lembra.

Desde então, Cristina não parou mais. Passou a fazer e vender artesanato em um ateliê montado em casa, mas a crise mesmo veio com a segunda gravidez, quando teve Ana Júlia, hoje com 11 anos. “Quando ela tinha um ano, montei uma lavanderia em casa. Ela acabou se adaptando fácil, pois era pequenininha, mas com o Rodrigo havia conflitos”. Cristina conta que o filho, então com dez anos, passou a exigir da mãe uma atenção extra que antes não pedia. “Misturou um pouco de ciúmes da irmã e o fato de eu estar trabalhando mais. Ele me queria por perto para tudo: ir ao futebol, fazer a lição de casa... Eu me sentia muito culpada, até chorava.” 

Mesmo assim, nunca pensou em parar. “Eu estava realizada trabalhando. Era graças ao meu trabalho que podia comprar as coisas que ele precisava. Além disso, sempre tive claro em mente que se eu não estiver bem comigo mesma, também não serei boa mãe”, diz. Anos mais tarde, quando a caçula nasceu, a crise já havia sido superada. “No fim ficou tudo bem. A Ana Lívia, hoje com seis anos, nem teve tempo para crises, ela já nasceu no meio de tudo isso. Eu estava entregando roupas no dia 19 de julho com o parto agendado para o dia 20. E teria voltado da maternidade passando roupas se meu marido não tivesse me proibido”, diverte-se. Ao ser questionada se está arrependida de algo, ela é categórica: “faria tudo de novo, igualzinho”. E completa: “O importante é que a pessoa goste do que faz para ter essa realização, para valer a pena. Se trabalhar apenas pelo dinheiro, a culpa e a cobrança são muito maiores.” 

Terceirizando os filhos

Mesmo que as dúvidas nunca cessem, mais cedo ou mais tarde a mulher tem que decidir se vai dedicar-se exclusivamente aos filhos ou não. Na verdade, na maioria dos casos nem há opção, a mãe simplesmente precisa voltar para conseguir sustentar a família. Quando isso acontece, novas dúvidas surgem: com quem deixar os pequenos?

Essa transferência de responsabilidade é a principal preocupação do médico pediatra, professor emérito e ex-reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) José Martins Filho, exposta em seu livro A Criança Terceirizada - Os Descaminhos das Relações Familiares no Mundo Contemporâneo. Na opinião de Martins Filho, o ideal seria que a criança ficasse exclusivamente com a mãe até pelo menos os dois anos de idade. “É nessa época em que, na verdade, começa a necessidade de socialização e de contato mais efetivo com outras crianças”, afirma. Ele chama de crianças terceirizadas tanto aquelas que vão para a escolinha como as que ficam com babás ou os avós. O especialista ainda questiona se muitas mulheres estão mesmo preparadas para a maternidade.

Foto: Camila Ferreira/Especial para a AAN A administradora e massoterapeuta Karen Pagano dedica as tardes para a filha Duda, mas se divide entre dois trabalhos: de manhã na empresa do marido e no fim da tarde e início da noite atendendo clientes em domicílio

“O que me intriga é constatar que, na maioria das vezes, as pessoas têm filhos sem saberem nada sobre isso, sem se darem conta da importância desse relacionamento profundo, do vínculo que se forma nesse período. Acham que, para uma criança, é suficiente que lhe troquem as fraldas e lhe deem comida. Como se isso bastasse... O mais necessário e nobre alimento, pode crer, é o afeto, acompanhado de carinho, prazer e paz”, escreve no livro. Para aquelas que não podem ficar exclusivamente com os filhos até os dois anos de idade ele aconselha: “Amamentem e, por favor, assumam seus filhos. Assumam o relacionamento, o cuidado, a alimentação, a ida ao pediatra. Sejam as mães que vocês desejam e não tenham vergonha disso. Errar é humano e é assim, que se aprende.” No livro, Martins Filho levanta o questionamento: “Quanto de afeto, respeito, educação se pode esperar da atenção de profissionais?”

A administradora Yumi Costa sabe bem ao que o pediatra se refere. Uma crise com a babá do seu casal de gêmeos, Gabriela e Rafael, de dois anos, levou-a uma decisão radical: largar a bem-sucedida carreira de executiva em uma multinacional para começar do zero, abrir o seu próprio negócio e trabalhar em casa para se dedicar mais aos pequenos. “Desde o começo eu tinha uma verdadeira tropa em casa para me ajudar a cuidar dos dois, pois minha mãe 4 mora em outra cidade e não tenho nem sogra nem sogro. Durante a gravidez, eu nunca pensei em parar de trabalhar, mas na prática é diferente.” A babá que contratou estava com os gêmeos desde o nascimento. Passou os seis meses da licença-maternidade de Yumi com ela. Parecia tudo bem, até que a mãe das crianças voltou a trabalhar. “Percebi uma mudança de comportamento na Gabriela, até que descobri que a babá havia mudado completamente a sua postura. Ela largava os dois no carrinho chorando, com fralda suja e até com fome, e ficava assistindo à TV. Assim que descobriu, Yumi demitiu a babá, mas a culpa permaneceu.

Foto: Divulgação Rita Khater, professora do curso de psicologia da PUC-Campinas: Interessa mais a qualidade do que a quantidade do tempo dedicado. Não adianta a mãe estar em casa 24 horas por dia se passa mais tempo em frente ao computador ou falando ao telefone do que brincando ou conversando com os filhos

“Passei 15 dias sem dormir, precisei fazer terapia, tomar remédio. Foi quando decidi mudar tudo.” O processo durou alguns meses, mas desde janeiro a agora empresária, sócia de um ateliê, está com rotina nova. “Continuo trabalhando muito e dependendo da ajuda de empregados, mas estou a maior parte do tempo em casa e isso faz toda a diferença. Além disso, eu agora faço o meu horário”, diz Yumi, que se sente outra pessoa. “Nunca estive tão bem. Tenho a sensação de estar fazendo a coisa certa. Quando penso em tudo o que passei e que me fez tomar essa decisão, sempre lembro de uma frase da minha terapeuta que me marcou muito: ‘É muito mais fácil ser executiva que ser mãe 24 horas’. Isso porque, como executiva você tem ideia dos resultados que virão; como mãe você nunca sabe como os filhos irão reagir, além de ser um trabalho de dedicação integral.”

Para o médico pediatra e professor emérito da Unicamp José Martins Filho, o ideal seria que a criança ficasse exclusivamente com a mãe até pelo menos os dois anos de idade: “É nessa época em que, na verdade, começa a necessidade de socialização e de contato mais efetivo com outras crianças”

Vida de equilibrista

Muitas mulheres se desdobram na tentativa de equilibrar vida pessoal, o cuidado com a casa, o papel de mãe e a carreira. A administradora e massoterapeuta Karen Pagano é uma delas. Ela, que atende clientes em domicílio, aproveitou a flexibilidade de horários para se dedicar mais à filha Maria Eduarda, hoje com três anos. “Logo que a Duda completou seis meses voltei a fazer as massagens, mas procurava centralizá-las no fim da tarde e início da noite, para ficar mais com ela”, lembra. Mesmo assim, Karen sentia culpa quando precisava sair para atender as clientes. “A consciência pesa, não tem jeito e sempre bate aquela saudade. Só não era pior porque sabia que ela estava bem cuidada”, destaca, ao contar que quando não estava por perto Duda ficava em casa com o pai ou na casa da avó materna, que mora no apartamento ao lado. Porém, desde o início do ano a rotina mudou. Além de atender suas clientes, Karen passou também a auxiliar na administração da empresa do marido pela manhã, período em que Duda vai para a escolinha. Ainda assim, o tempo dedicado à filha continua sagrado. “Passamos o período da tarde juntas.” Até o final do ano, tudo deve mudar novamente. “Penso em voltar a estudar, mas isso ainda está no planejamento”, diz.

Já a técnica em radiologia e enfermeira Karina Viola não teve outra escolha senão colocar a filha na escolinha assim que terminou a licença-maternidade. Para sua tranquilidade, o pai, que é farmacêutico, mudou o horário de trabalho para ficar com a pequena Carolina pela manhã, assim ela só fica fora de casa meio período. “Quando a Carol tinha dois meses, surgiu a oportunidade do Felipe mudar o horário de trabalho. Partiu dele a decisão de assumir o cuidado dela no período da manhã. Saber que ela está com o pai, que é extremamente dedicado, me deixa tranquila e ameniza o sentimento de culpa”, afirma. Mesmo assim, ela conta que o começo foi complicado. “Nas primeiras semanas, quando voltei a trabalhar, foi muito difícil. Eu sentia muita ansiedade, queria chegar logo em casa. Ligava na escolinha para saber se ela estava bem, se dormiu, se comeu, se chorou. A culpa senti quando vieram as viroses. A escolinha tem o lado bom, mas também a criança fica mais suscetível a doenças”, lembra a mãe. Segundo ela, no início foram várias crises. “A Carolina chegou a ficar 15 dias em casa. 

Por sorte, na época, pude contar com a minha mãe, minha sogra e meu sogro que é pediatra para me socorrer, mas eu sentia muita culpa por não estar ali 24 horas por dia”, desabafa. A rotina de Karina é puxada. Ela mora em Vinhedo e trabalha em Campinas, sai de casa às 7h e volta às 17h. No total, fica cinco horas diárias com a filha, tempo que afirma ser de dedicação total. “O que vale é a qualidade do tempo que passamos com nossos filhos e não a quantidade. Eu sento no chão para brincar, assisto a desenhos, jantamos juntas, dou banho, tento ler um livro e coloco para dormir. Depois que ela dorme, me dedico aos afazeres domésticos. No final de semana, faço as coisas de casa com ela. Se vou lavar a louça, ela está junto. Coloco ela na pia e dou peças de plástico, ela adora brincar com água e estender roupas. Faço do serviço doméstico uma brincadeira”, destaca. Mas essa correria toda tem um preço: “Tempo para mim? Eu não sei mais o que é isso! Mas vale a pena, pois sei que passa muito rápido”, diz.

Foto: Janaína Maciel/AAN Para o médico pediatra e professor emérito da Unicamp José Martins Filho, o ideal seria que a criança ficasse exclusivamente com a mãe até pelo menos os dois anos de idade:

Tudo de novo

Existem a dor da culpa, as lágrimas e todos os conflitos da maternidade, mas ela é compensadora, acreditem. Tanto é verdade que não são poucas as mães que decidem passar por tudo de novo. É o caso da tenente do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo Lucimara Vilas Boas. O pequeno Ícaro está com três anos e ela nem precisou pensar muito para decidir, com o marido, ampliar a família. Está grávida de dois meses e meio. O fato de ter optado por ter outro filho não quer dizer que a primeira empreitada tenha sido fácil. “Somando licença, férias e algumas folgas, consegui emendar mais de oito meses a partir do nascimento, mas desde que ele foi para a escolinha fica lá em período integral. Durante a fase de adaptação, lá estava ele, tranquilo, encantado com as cores e as coisas da escolinha e eu do outro lado chorando por ter de deixá-lo”, lembra. “Eu sentia tanta culpa que passou pela minha cabeça parar de trabalhar.” Porém, se manteve firme na decisão de dar continuidade à carreira e garante que não se sentiria completa se fizesse diferente.

O marido de Lucimara também é tenente do Corpo de Bombeiros, ambos fazem plantões de 24 horas, de três a quatro vezes por mês. “Nunca fazemos plantões juntos, pois apenas um oficial é escalado, mas já aconteceu do Eric (marido) e eu irmos para a mesma ocorrência, porque era um acidente grande e precisava de mais efetivo. Tivemos que contar com a ajuda de familiares que foram buscar o Ícaro na escola e ficaram com ele até um de nós dois ser liberado.”

Para a mãe, o plantão é sempre mais difícil. “Já passei por noites em que o Ícaro estava em casa doente chamando por mim. Mesmo sabendo que meu marido estava com ele, eu ficava mal. Também já aconteceu de eu emendar o plantão de 24 horas com uma reunião na manhã seguinte e quando fui buscá-lo na escolinha ele estava bravo comigo, emburrado”. Mesmo assim, Lucimara valoriza o lado positivo: “‘Por conta do plantão, sempre tenho uma folga na sequência e isso me permite passar um dia inteiro com ele, o que eu considero um privilégio. Vejo pais que têm os filhos na mesma escolinha e que, por serem comerciantes, trabalham aos sábados, 4 às vezes no feriado e não têm essa mesma oportunidade.”

Agora o pequeno só pensa em curtir o futuro irmão ou irmã que está a caminho. “Desde que soube da gravidez, quando como alguma coisa ele me pergunta: ‘o bebê gostou?’ É uma delícia”, comemora.

Os exemplos são inúmeros e as escolhas das mães para curtir seus rebentos, as mais variadas, dependendo das opções que têm ou não em mãos. Mas especialistas afirmam que o importante é ter uma vivência intensa com os filhos, seja por poucas ou muitas horas. “O tempo dedicado a eles, seja qual for, tem que ser de excelência. É isso que, no final das contas, fará a diferença”, sentencia a professora de psicologia da PUC-Campinas Rita Khater. 

Foto: Janaína Maciel/AAN Grávida pela segunda vez, Lucimara Vilas Boas e o filho Ícaro curtem o novo momento:  

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