educação

Infância com afeto

Crianças que têm boas oportunidades na infância tendem a apresentar melhor desempenho profissional quando adultos e maior ajuste social

Janete Trevisani
janete@rac.com.br
22/10/2018 às 18:12.
Atualizado em 06/04/2022 às 01:11

“O homem que sou é por causa da criança que fui”. É com esta frase do escritor português José Saramago que o pediatra José Martins Filho sintetiza de maneira poética a importância da primeira infância. Com 50 anos dedicados à pediatria e 19 livros publicados, o médico é um dos maiores defensores das crianças e do aleitamento materno. Para ele, os primeiros mil dias de um ser humano são fundamentais para um desenvolvimento saudável. “O afeto, o carinho e a atenção são nutritivos e as crianças crescem melhor quando são amadas, consequentemente se tornarão adultos melhores. O professor e ex-reitor da Unicamp, presidente da Academia Brasileira de Pediatria e autor de livros como “Quem Cuidará das Crianças?” e “A Criança Terceirizada”, assegura que os primeiros mil dias de uma criança - contados desde os nove meses de gestação até chegar perto dos dois anos - são essenciais para a construção de um ser humano mais feliz e equilibrado. Esses mil dias estabelecem as bases do desenvolvimento físico, intelectual e psicossocial da criança. No livro “Cuidado, Afeto e Limites. Uma Combinação Possível”, escrito em parceria com o psicólogo Ivan Capellato (leia entrevista com ele abaixo), os dois autores defendem que os pais precisam passar mais tempo com os filhos. “Educar dá trabalho e quem não está tendo trabalho é porque não está educando. Ter filhos significa estar disponível e saber a importância do papel dos pais no desenvolvimento da vida futura”, diz.  Para ele, qualidade é presença. “Hoje em dia nossas crianças estão carentes de amor, afeto, cuidados básicos e orientações. Se a criança chora é preciso pegar no colo, acalentar. Atualmente, os pais não têm mais tempo de dar carinho aos filhos e isso tem sido muito prejudicial”, assinala. Os estudos do especialista batem com os resultados da pesquisa recém-realizada pela Universidade de Washington, nos EUA, feita com 127 crianças em idade pré-escolar. Uma das conclusões do estudo é que a interação entre mãe e filho pode fazer dobrar de tamanho o hipocampo, região do cérebro associada ao aprendizado, à memória e regulação das emoções. O desenvolvimento motor é o que possibilita novas habilidades cognitivas na criança. A cada novo movimento que ela consegue fazer, um mundo se abre à sua frente. E aí também entra o afeto, as manifestações de carinho, o amor, já que sem ele ninguém cresce bem. O estudo tem tudo a ver também com as constatações da pediatra e pesquisadora Emmi Pikler (1902/1984): “Como é diferente a imagem do mundo que uma criança recebe quando mãos silenciosas, pacientes, cuidadosas e ainda seguras e resolutas cuidam dela; e como parece ser diferente o mundo quando essas mãos são impacientes, rudes, apressadas, inquietas e nervosas”. Austríaca, ela desenvolveu seu trabalho na Hungria e foi diretora de uma instituição que acolhia crianças órfãs e abandonadas. Hoje, o instituto que leva o nome da pesquisadora é referência mundial para quem cuida de crianças. Foto por: Leandro Torres Foto por: Leandro Torres Exibir legenda 1100

Páscoa Colli Tozoni, presidente da Meimei, e Gibiane Aline Ferreira, diretora educacional: "É realmente como se estivéssemos cuidando desde a semente até o florescer deles". Quando as crianças estão no último ano na instituição, fazem um vaso onde plantam uma semente e levam a flor para casa..

A Cada da Criança Meimei foi criada em 1963 e atende 264 crianças de zero a 5 anos e 11 meses: quem chega é recebido com um abraço. Regados a amor Em Campinas, a Casa da Criança Meimei usa justamente a abordagem de Pikler. A instituição, criada em 1963, no momento atende 264 crianças de zero a 5 anos e 11 meses, de famílias em situação de vulnerabilidade e risco social, e quem chega é recebido com um abraço de uma ou de muitas delas. Lá não se economiza afeto. Os pequenos cidadãos são regados diariamente a carinho, amor, confiança, respeito, higiene, cuidado, rotina, além de passarem o dia em um ambiente tranquilo, seguro e saudável. Além disso, o local busca ofertar uma alimentação rica em verduras, legumes e frutas, ajudando a suprir parte de uma alimentação que, às vezes, é deficitária em casa. “Sabemos que boa parte das famílias passam por muitas necessidades. Temos consciência do quanto este ambiente que conseguimos proporcionar a elas é importante para o desenvolvimento saudável das crianças e serve também de apoio às famílias”, diz Páscoa Colli Tozoni, presidente da Meimei. “Sabemos o quanto o vínculo afetivo, a relação entre o adulto e a criança pode fazer toda a diferença”, completa a diretora educacional Gibiane Aline Ferreira. O local passou por mudanças físicas e o conhecido cadeirão, usado para alimentação, foi substituído por mesas e cadeiras adequadas ao tamanho das crianças. “As que ainda não sentam comem no colo das educadoras”, diz Gibiane. O local de banho ganhou escadas para trabalhar a autonomia dos pequenos. A valorização do movimento livre em espaços organizados e preparados para elas também faz toda diferença. Cada educador de referência é responsável pelo cuidado de 8 crianças. “Dá para perceber que os vínculos com as educadoras se dão por meio de gestos, olhares e sons. “No começo as crianças chegam inseguras. A partir do momento que se sentem seguras e acolhidas vão evoluindo. É muito bonito ver a evolução delas no decorrer dos anos”, conta a diretora. O local possui 7 salas de aula, 1 parque com tanque de areia, uma quadra coberta, uma brinquedoteca e um jardim sensorial, entre outros espaços. “Acredito que ajudamos a preparar o alicerce das crianças. Sinto muita alegria em saber que estamos conseguindo fazer a diferença em muitas vidas. É realmente como se estivéssemos cuidando desde a semente até o florescer deles”, diz a presidente da Meimei. Tanto que, quando as crianças estão no último ano na instituição, fazem um vaso onde plantam uma semente e levam a flor para casa. Na foto, José Martins Filho, pediatra: “Abrace, acaricie, converse, amamente e fique bem juntinho de seu bebê” Falta da mãe O vínculo da criança com a mãe é essencial no período da licença-maternidade, como destaca o pediatra José Martins Filho, mas ele acha que no Brasil esse período é muito curto. “As crianças que vão precocemente para as creches podem sofrer de Síndrome de Privação Materna, ou seja, falta da mãe. A minha luta é pela licença ampliada, como ocorre em muitos países evoluídos”, diz. Mas ele dá dicas para quem não tem esse privilégio de tentar estar presente sempre, buscando acompanhar o filho à escola, ao pediatra, levar a criança para brincar em praças, parques, ou seja, dedicar tempo aos pequenos. “Abrace, acaricie, converse, amamente e fique bem juntinho de seu bebê. O vínculo é fundamental e a amamentação é indispensável”, diz. Ajuste social Crianças que têm boas oportunidades na infância (escolares, afetivas e sociais) tendem a apresentar um melhor desempenho acadêmico e profissional, um maior ajuste social e uma menor propensão à criminalidade, uso de drogas, adoecimento físico ou mental. As funções cognitivas mais especializadas de um ser humano, como a atenção, a memória, o planejamento, o raciocínio e o juízo crítico começam a se desenvolver na primeira infância, e os circuitos cerebrais responsáveis por essas funções serão refinados durante a adolescência até a maioridade. Portanto, são dependentes de conexões fundamentais que se iniciam nos primeiros anos de vida. Essa avaliação foi feita para o documento Importância dos vínculos familiares na primeira infância, divulgado em 2016 pelo Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância, e que pode ser conferido na página www.ncpi.org.br. Os pesquisadores brasileiros de diversas áreas do conhecimento se uniram para apoiar, com informações importantes, os gestores públicos e legisladores que queiram criar boas políticas e programas para gestantes e crianças pequenas. Este é o segundo texto de uma série e trata da importância que os primeiros anos de vida têm sobre a capacidade de aprendizagem das crianças Na foto, Ivan Capelatto, psicólogo: "As crianças sem self se tornam caladas muitas vezes, frágeis em outras, sem condição psíquica de suportar a frustração". Estruturação do sentimento Da sua experiência com famílias, o psicólogo Ivan Capelatto diz que a afetividade é uma dinâmica fundamental nessa fase e a presença da figura cuidadora (mãe), traz um ganho muito importante para a criança, considerada a fase da estruturação do sentimento de pertinência, ou self. “Esse sentimento que trará como benefícios a autoestima, de ser amado pela mãe, a facilidade de fazer escolhas no futuro sem depender de outros ou dos desejos e opiniões de outros, e o ganho mais importante, que é a saúde mental, a lucidez”, especifica. “As crianças sem self se tornam caladas muitas vezes, frágeis em outras, sem condição psíquica de suportar a frustração; agressivas ou auto agressivas e incapazes de fazer escolhas pelo próprio desejo; querem tudo, pois não conseguem escolher”, explica o especialista. Na escola, os pequenos tornam-se carentes, precisando da atenção constante da professora, ou, ao contrário, ficam irritados, mandões e sem recolher a oferta de aprendizagem ou de sociabilização. Mas será que existe um modelo de educação para o melhor aprendizado e estrutura emocional da criança? “Sim. O melhor modelo é aquele onde o professor é treinado e capacitado para ser também um educador. Isso significa que, além de oferecer condições de aprendizagem, se tornam também cuidadores, com uma preocupação constante com o estado psíquico e comportamental de seus pequenos alunos. A inclusão da família no contexto escolar é fundamental para trocas de observações e orientações de conduta em casa”, diz Capelatto. “O desapego, o abandono, a terceirização infantil e os maus tratos têm a ver com o desenvolvimento sério de problemas emocionais e comportamentais que afetam a vida nos primeiros tempos e persistem muitas vezes pelo resto da vida. É o que muitos autores chamam de ‘A gênese da violência na primeira infância’. Estou convencido que as gerações mais velhas têm que se conscientizar de que os jovens e principalmente os muito jovens são prioritários e devem ser cuidados, apoiados, bem nutridos e tratados com carinho e atenção. Dessa maneira, enfrentando estes desafios seguramente estaremos cumprindo nossas metas de bem-estar familiar e social”, completa o pediatra José Martins Filho em um de seus inúmeros textos sobre a primeira infância. Com tudo isso, fica a reflexão: homens e mulheres estão preparados para ser bons pais?

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