Desenhos e aquarelas do artista e inventor ganham registros online de acesso gratuito, incluindo paisagens rurais na então Vila de São Carlos, atual Campinas, nas décadas de 1820 e 1830
(Divulgação)
Hercule Florence, artista e inventor franco-monegasco, é bastante conhecido por ter sido um dos precursores do processo fotográfico. Ele aportou em 1824 no Brasil, onde se estabeleceu, deu origem a uma numerosa família, desenvolveu pesquisas — inclusive as que levaram à descoberta do processo fotográfico — e viveu em Campinas até sua morte em 1879. Mas a obra é muito mais ampla e envolve desenhos, aquarelas e pinturas que retratam povos indígenas, negros escravos, a fauna e a flora do Brasil. Parte desse acervo — formado por 526 desenhos, aquarelas, pinturas e escritos — está sendo disponibilizada para acesso público gratuito pelo Instituto Moreira Salles (IMS).
Essa parte da obra iconográfica de Hercule Florence foi adquirida em 2023 pelo Instituto Moreira Sales, catalogada e agora disponibilizada ao público no site da instituição: https://acervos.ims. com.br. São trabalhos produzidos durante a Expedição Langsdorff, que percorreu o interior do País na primeira metade do século XIX, e em Campinas, onde Florence viveu até sua morte. Elas fazem parte da coleção de Cyrillo Hercules Florence, um acervo privado que pertencia à sua família e era pouco conhecido até agora.
A série, que retrata as fazendas de Campinas, registra a expansão agrícola, principalmente do plantio de café e cana-de-açúcar na então Vila de São Carlos, onde Florence se casou com a filha de um influente médico e político da região. O dia a dia de uma fazenda de café naquele período, com o trabalho escravizado, está muito bem documentado não só em imagens como também em seus escritos. Florence escreveu tanto, e sobre tudo que viveu aqui no Brasil, que seus textos funcionam como um guia para identificar muitas de suas obras.
A coleção sob a guarda do IMS teve as obras reunidas por um dos netos do artista, Cyrillo Hercules Florence (1901-1995), professor do Laboratório de Física da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, e por isso leva seu nome. Os desenhos e aquarelas se relacionam com outro grande conjunto de obras de Florence, que se encontra no Arquivo da Academia de Ciências de São Petersburgo, na Rússia.
Reconhecido pela excelência de sua documentação visual, Hercule Florence se distinguiu em vários campos, notadamente a fotografia. O Instituto Moreira Salles possui em seu acervo algumas raridades, como um conjunto de rótulos para frascos farmacêuticos impressos fotograficamente por Florence em 1833. Seus desenhos e suas pinturas vêm se juntar com peso a esses itens, oferecendo ao público uma visão ampla do trabalho do artista. "Temos consciência da importância de facilitar o acesso do público à obra desse autor já tão estudado e ainda tão pouco conhecido", diz Julia Kovensky, coordenadora de Iconografia do Instituto.
REGISTROS MINUCIOSOS
Entre os aproximadamente 1.200 itens da coleção, há também objetos fotográficos, documentos pessoais e muitos escritos de Florence, que ainda passarão por catalogação. As obras já disponíveis foram produzidas em grafite, nanquim, aguada de nanquim, aquarela e tinta ferrogálica sobre papel.
O acervo sob a guarda do Instituto Moreira Salles se destaca pelo ineditismo e detalhamento na documentação de comunidades e localidades do interior do Brasil, até então pouco exploradas.
Desde que a coleção chegou ao IMS, em 2023, os itens vêm sendo catalogados, em um trabalho minucioso que inclui a fixação de informações como o título original da obra e sua tradução, confirmação da data e do local em que cada desenho, aquarela e pintura foram produzidos, anotações de pesquisa, histórico de utilização de cada obra e, ainda, a revisão das menções a povos indígenas.
Este último tópico contou com a assessoria da antropóloga Maria Luísa Lucas, professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), e tenta atualizar as informações com os termos mais adequados hoje, para se referir a determinados povos indígenas a partir da autodenominação desses grupos.
UM AVENTUREIRO DESENHISTA
Florence pôde produzir essa obra extensa e importante porque se juntou a uma notória incursão científica: a Expedição Langsdorff, conduzida pelo barão Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852), médico e naturalista alemão naturalizado russo, e patrocinada pelo czar Alexandre I, com apoio de D. Pedro I. Em sua primeira etapa, que percorreu o Rio de Janeiro e Minas Gerais (1824-1825), a expedição contava com Johann Moritz Rugendas como desenhista, mas este decidiu seguir viagem sozinho. Florence, um jovem de espírito aventureiro e explorador, que havia chegado ao Brasil em 1824, aos 20 anos, respondeu então ao anúncio publicado em 7 de julho de 1825 no Diário do Rio de Janeiro para substituir Rugendas e, mesmo com pouca formação na área, compôs com o francês Aimé-Adrien Taunay o time de desenhistas da viagem.
A expedição partiu em junho de 1826 de Porto Feliz, em São Paulo, para percorrer, por via fluvial, mais de 13 mil quilômetros pelas regiões dos atuais Estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Pará, a maior parte navegando pelos Rios Tietê, Paraná, Paraguai, Tapajós e seus afluentes. O material produzido nessa viagem é um dos grandes conjuntos que formam a coleção de desenhos e aquarelas de Florence, e traz uma riquíssima descrição de povos indígenas que encontrou ao longo do percurso. Ele reproduz com detalhes diferentes pinturas corporais e adornos, conseguindo uma representação bastante fiel de povos como os Guató, Bororo, Apiaká, Terena e Kaingang. E fez o mesmo com pessoas negras, como em desenhos realizados em 1828, quando a expedição se encontrava nos arredores de Diamantino, no Mato Grosso.
Outra série disponível nessa coleção tem o nome de "Céus" e é composta por 34 imagens do céu do Brasil, um registro pioneiro de diferentes formas e cores de nuvens e condições climáticas, que reflete o olhar curioso e observador de Florence em relação à natureza. Ao buscar entender a formação das nuvens e outros fenômenos, ele produziu uma espécie de catálogo para servir a artistas como modelo para suas composições.
CONHEÇA
Acesse: https://acervos.ims.com.br/ e na área de pesquisa digite 'Hercule Florence' para ser direcionado ao acervo com 27 páginas de desenhos, aquarelas, fotografias, documentos e anotações, que podem ser visualizados ou baixados.
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