A barbárie atinge as artes

Invasão de vândalos em Brasília danificou obras do acervo dos Três Poderes

Além da tela "As Mulatas" de Di Cavalcanti, avaliada em R$ 8 milhões, os prejuízos ainda são contabilizados, mas estima-se que ultrapassem os R$ 30 milhões

Aline Guevara e Cibele Vieira
10/01/2023 às 09:18.
Atualizado em 10/01/2023 às 09:19
"As Mulatas" de Di Cavalcanti, avaliada em R$ 8 milhões (Reprodução)

"As Mulatas" de Di Cavalcanti, avaliada em R$ 8 milhões (Reprodução)

O rico acervo que representa a história da República e das artes brasileiras foi vandalizado durante a invasão ocorrida no último domingo em Brasília. Quadros, esculturas, vasos e outras obras raras que integravam as galerias de visitação pública dos prédios da Presidência, da Câmara Federal e do Supremo Tribunal Federal, foram rasgados, quebrados, jogados na água e muitos sumiram. Até o fechamento desta edição não estava concluído o levantamento minucioso de todas as obras danificadas, mas uma avaliação preliminar feita pela equipe responsável identifica que parte do acervo artístico e arquitetônico ali reunido - e que representa um capítulo importante da história nacional - foi destruído.

"Do ponto de vista artístico, o Planalto certamente reúne um dos mais importantes acervos do país, especialmente do Modernismo Brasileiro", declarou o diretor de Curadoria dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho. Ele comentou que "o valor do que foi destruído é incalculável por conta da história que representa. O conjunto do acervo foi formado por todos os presidentes que representaram o povo brasileiro durante este longo período que começa com JK. É este o seu valor histórico", disse. Em 2016, quando foi catalogado, o acervo era composto por 146 quadros e 17 esculturas. As medidas de restabelecimento de todos os prédios e a definição das ações de conservação e restauração dos bens protegidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) começou a ser articulada na tarde de segunda-feira (9), pelo Ministério da Cultura. Mas o planejamento só será finalizado após o fim das perícias realizadas no local.

Patrimônio destruído

Embora parte das obras danificadas possam ser recuperadas, uma relíquia foi totalmente destruída: o Relógio de Balthazar Martinot. Era um relógio de pêndulo do século XVII, presenteado pela Corte Francesa para Dom João VI, com um valor considerado fora de padrão. Martinot era o relojoeiro de Luís XIV e existem apenas dois relógios deste autor. O outro, exposto no Palácio de Versailles, na França, tem a metade do tamanho da peça que foi completamente destruída pelos invasores do Planalto.

Ele ficava no terceiro andar do Planalto, onde estava também a tela "As Mulatas", de Di Cavalcanti, deixada com sete rasgos de diferentes tamanhos. É uma das mais importantes da produção do artista brasileiro, avaliada em R$ 8 milhões. A escultura em bronze intitulada "O Flautista", de Bruno Giorgi, avaliada em R$ 250 mil, também foi destruída, encontrada em pedaços espalhados pelo salão. Outra escultura de parede confeccionada em madeira é a de Frans Krajcberg, estimada em R$ 300 mil, também foi quebrada em diversos pontos. 

ontos. Do mobiliário histórico, a mesa de trabalho de Juscelino Kubitscheck que ficava exposta no salão, foi usada como barricada pelos invasores. E a mesa-vitrine de Sérgio Rodrigues - móvel que abriga as informações do presidente em exercício - teve o vidro todo quebrado. No 2º andar, no corredor que dá acesso às salas dos ministérios que funcionam no Planalto, os quadros foram rasurados ou quebrados, especialmente os de fotografias. Inclusive a Galeria dos ex-presidentes, que fica no térreo, foi totalmente destruída, com todas as fotografias retiradas da parede, jogadas ao chão, rasgadas e molduras quebradas.

Muitas obras foram também danificadas com água, que inundou os salões acarpetados do térreo, segundo informações da comunicação da Presidência. Entre elas está a pintura "Bandeira do Brasil", de Jorge Eduardo, de 1995, que reproduz a bandeira nacional hasteada em frente ao Palácio e serviu de cenário para pronunciamentos dos presidentes da República. Ela foi encontrada boiando sobre a água que inundou todo o andar, após vândalos abrirem os hidrantes ali instalados.

Arte e vandalismo

"A gente está diante de dois grandes impactos, o primeiro é o simbólico, que é inestimável, e o segundo é financeiro, com valores muito caros para os cofres públicos. Essas obras vandalizadas são raras, muitas feitas por artistas já falecidos, outras que foram presentes de comitivas estrangeiras em visita ao Brasil, peças herdadas da época colonial", explica Sylvia Furegatti, docente do Instituto de Artes da Unicamp. A especialista avalia que o impacto das ações dos vândalos sobre o acervo do Palácio do Planalto ainda é difícil de calcular, afinal há obras que podem ser mais facilmente restauradas, outras cujo dano foi extenso e ainda peças roubadas.

Para Sylvia, que também é a diretora do Museu de Artes Visuais da Unicamp, é visível o desconhecimento dos vândalos das obras atacadas, do valor artístico, histórico e patrimonial. "A coleção do Palácio do Planalto não é do presidente, é do povo brasileiro, historicamente exposta ali para demonstrar para o país e para visitantes estrangeiros, como orquestramos nossos valores simbólicos e patrimônio cultural". Contextualizando, ela compara o que houve aqui com movimentos históricos de ataques a obras de artes e outros símbolos, em guerras e conflitos, cujo objetivo era de diminuir a importância da cultura local a partir da imposição de uma nova ordem e governo. Não é o caso aqui, esclarece. "Esse vandalismo que a gente viu tem trejeitos de ignorância [...]Acho que essa classe que atuou ali tem um consumo de massa que não acessa o tipo de informação que carrega esse patrimônio cultural. Não são visitantes de museus, que reconhecem o valor da arte e da cultura, são consumidores de shopping center". 

Para ela, serão necessários pelo menos seis meses para uma avaliação mais completa para a recuperação do acervo. O custo (já estimado em mais de R$ 30 milhões) sairá dos cofres públicos. "Esse tipo de vandalismo é um mau que assola os museus pelo Brasil, direta ou indiretamente. Quando você visita e não reconhece, não respeita, põe a mão, estraga, quando deixa de visitar por ignorância, ou quando um gestor cuida e não presta a atenção na importância simbólica que a arte tem para o povo, isso gera grupos como esse que estamos vendo", completa, reforçando que o ataque foi mais um descaso com a cultura que é evidente no Brasil há décadas. "Estes vândalos são os mesmos que vão para museus no exterior e lá enxergam validade, ou nem mesmo vão visitar. É uma ação que fala muito sobre o estado da cultura e dos museus no nosso país de hoje", finaliza.

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