Já ouviu aquela propaganda do rádio que diz que não é fácil ser mulher, profissional, trabalhar o dia inteiro, cuidar da família, da casa e ainda ser linda, inteligente e... magra!? Bem, no século 16 Gráinne O’Malley já era tudo isso. Tudo bem que na maior parte da vida a profissão da moça foi a pirataria (isso sim é vencer em um ambiente de trabalho tipicamente masculino), mas não foi à toa que esta irlandesa tornou-se uma verdadeira lenda em seu país natal e, neste ano, uma bela graphic novel, chamada 'Gráinne Mhaol'. O mais curioso, porém, é que a HQ — que acaba de receber o prêmio de melhor obra infantil do ano naquele país — foi inteiramente produzida no Brasil, pela dupla de quadrinistas Gisela Pizzato e Bruno Büll.E, diferentemente do que acontece na maioria destes casos, não foi a editora internacional que veio atrás da mão de obra e do talento brasileiro. “Foi a gente que correu atrás. A Gisela tinha a vontade de contar essa história já fazia um tempo, ela gosta muito da cultura, folclore e afins da Irlanda, e eu fui o cara que ela gentilmente convidou a participar do projeto junto. Já vínhamos conversando há algum tempo sobre isso quando a editora Barba Negra abriu um concurso para projetos de quadrinhos nacionais, no começo de 2011, se não me engano. Preparamos uma amostra para mandar e, como acabou não virando, a Gisela pegou essa amostra e começou a mandar para editoras de fora. Conseguimos esse lance com a Clo Mhaigh Eo lá da Irlanda, que era uma vontade da Gi também: lançar por lá primeiro”, conta Büll.Gisela, que além de bamba na nona arte é historiadora, conta que a editora não só adotou o projeto como deu liberdade total no roteiro desenvolvido por ela — os desenhos e conceitos de arte ficaram a cargo de Büll. “Foi muito legal trabalhar com esse editor. Praticamente tudo o que propusemos foi aceito, poucas coisas tiveram de ser cortadas ou mudadas. A história sempre me encantou, eu adoro histórias de piratas e Grace foi a primeira mulher pirata da história! Eu já tinha escrito essa história em formato de conto há mais de dez anos e, conversando com o Bruno, achamos que ia ser bem legal fazer o trabalho em quadrinhos, aí montei o story board e a coisa foi acontecendo”, relembra.'Gráinne O’Malley' nasceu em 1530, filha de um poderoso chefe de clã irlandês. Ainda menina, quis ir com o pai para a Espanha e recebeu uma negativa com uma daquelas justificativas bonitinhas que os pais inventam quando não querem levar as filhas junto: “Seu cabelo pode enroscar nas amarras do navio”. A menina não teve dúvida: raspou a cabeleira ruiva e se apresentou junto com a tripulação. O pai, sem mais desculpas, não só a levou como deu à garota o apelido “Mhaol” (“careca”), que se tornou mais popular do que o sobrenome original — a moça também é conhecida por outros nomes, como Grace O’Malley, Granuaile e Gráinne Ní Mháille, mas nenhum se sobrepõe a Gráinne Mhaol.Bruno Büll conta que, artisticamente, também teve liberdade para compor o visual da história e da personagem. “Eu e a Gisela conversamos bastante sobre que estilo gostaríamos de seguir, e todo o lance de eu trabalhar bastante com hachuras, linhas finas, pouco preto, para ela ficar bem livre na hora de pintar também. As minhas conversas com o editor foram, em sua maioria, justamente para acertar todas as referências geográficas, de vestimenta, de construções, para ficar fiel à época e ao local. O visual da Gráinne foi, primeiramente, pensado pela Gi. Se foi uma autorreferência, é ela que pode te responder", brinca o desenhista, referindo-se aos cabelos ruivos da colega, e completa: “É o visual que acaba aparecendo mais se você faz uma pesquisa do nome dela no Google. Talvez tenha a ver com o arquétipo do irlandês mesmo.” ViagemA dupla brasileira conta que todo o processo foi muito bom em termos de aprendizado e diversão, ainda que — ao menos pelos lados de Büll — houve uma certa dificuldade em lidar com o tempo e pegar ritmo para produzir, já que a obra foi o primeiro trabalho grande de quadrinhos de ambos e nenhum deles fez isso exclusivamente durante toda a produção. “E a parte de pesquisa de referências foi bem difícil em alguns momentos. Um ou dois castelos que aparecem na história, por exemplo, foram destruídos há séculos, não existem fotografias e achar desenhos e pinturas da época que ajudassem na reprodução levou um bom tempo.”Até mesmo para cumprir o prazo, Gisela e Büll contaram com a ajuda de outra brasileira, Laís, que auxiliou na arte final. Tanto trabalho valeu a pena, não só por ver publicada uma obra de qualidade como também pelo reconhecimento. Os brasileiros foram, inclusive, convidados para receber o prêmio das mãos do presidente irlandês, Michael Higgins, e agora tentam conseguir recursos para conhecer a terra da pirata que os está deixando famosos. O jornalista Dario DJota Carvalho é especialista em quadrinhos e autor das tiras Só Dando Gizada, publicadas diariamente no Caderno C