CADERNO C

Ancestralidade, presente

Documentário de cineastas campineiros acompanha a jornada dos primeiros estudantes indígenas em programa da Unicamp

Aline Guevara/cadernoc@rac.com.br
28/08/2024 às 14:36.
Atualizado em 28/08/2024 às 14:36
A equipe de produção do filme visitou três territórios indígenas, de onde provêm os estudantes retratados: o Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, no território Kuikuro; Águas Belas em Pernambuco, território Fulni-ô; e o município amazonense Novo Airão, onde vivemos Mundurukus (Divulgação/Rafael Smaira)

A equipe de produção do filme visitou três territórios indígenas, de onde provêm os estudantes retratados: o Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, no território Kuikuro; Águas Belas em Pernambuco, território Fulni-ô; e o município amazonense Novo Airão, onde vivemos Mundurukus (Divulgação/Rafael Smaira)

 O cinema que retrata a realidade indígena está em ascensão no Brasil. Mas ao escolherem esta temática, os cineastas campineiros Juliana Sangion e Cauê Nunes buscaram um viés mais incomum. O filme "Ancestralidade, presente" se desenvolveu em torno da ideia de mostrar como estão os alunos das primeiras turmas do programa Vestibular Indígena da Unicamp, iniciativa que passou a ser implementada em 2019 e já atingiu mais de 400 estudantes. Por enquanto, a produção — realizada graças ao financiamento do Fundo Setorial do Audiovisual da Ancine —está em finalização de filmagens e já tem um contrato de exibição com o canal Curta! 

Segundo Cauê, o filme mostra como esses alunos, que migraram de seu território para Campinas, lidam com as diferenças culturais e como a universidade lida com eles. Desde o início de 2024, a dupla de cineastas e sua equipe acompanham seis estudantes da universidade, cada um de uma etnia e origem diferentes no Brasil. A câmera que os segue nos últimos meses quer entendê-los, do berço à vida em Campinas, dando voz a eles. "Queremos contemplar todas as etnias, contando a história pessoal e coletiva que aquela pes soa tem dentro de sua etnia e comunidade", diz o diretor. 

Um dos estudantes acompanhados é Yanauê Bion, de 19 anos, do povo Fulni-ô, de Pernambuco. Estudante de Medicina, este é seu segundo ano no município e ele sabe que ainda tem alguns anos de curso pela frente. "Pretendo voltar. Sei que estudar em Campinas é um caminho difícil, mas entendi, em conversas com meus pais e lideranças, que deve ser percorrido. É por uma causa maior", explica o aluno da Unicamp. Ele explica que é importante para a sua comunidade ter profissionais das mais variadas áreas. "É um sacrifício estar longe da família, dos amigos e das nossas práticas. Talvez no futuro, outros não precisem passar por isso de uma forma tão intensa." 

Com a mudança para o Sudeste, um de seus principais desafios tem sido a sensação de isolamento. Yanauê é o único Fulni-ô no campus e não veio com nenhum familiar. As orações em seu idioma original e o tradicional fumo do cachimbo ajudam-no a manter a conexão, mas também considera fundamental integrar o Coletivo Indígena da universidade. "Manter a luta com os outros me ajuda a reafirmar quem eu sou, lembrar que estou aqui para lutar por outros que também são indígenas", afirma categoricamente. 

DO PESSOAL AO COLETIVO 

Para as filmagens, a equipe visitou, em 20 dias, três territórios indígenas diferentes, todos moradas originais dos estudantes retratados: o Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, no território Kuikuro; a cidade de Águas Belas no agreste pernambucano, territó rio da etnia Fulni-ô; e o município amazonense Novo Airão, onde vive a comunidade Munduruku. As dificuldades logísticas para chegar em algumas regiões mais isoladas foram notáveis, mas houve também o desafio cultural "de chegarem sem visões pré-concebidas e com uma câmera recuada e observativa, de escuta", segundo Juliana. 

A cineasta explica que eles não queriam executar um roteiro previamente pensado, idealizando o que iriam encontrar. "No Xingu, por exemplo, encontramos uma comunidade mais típica. Malocas, casas de sapê, chão de terra batido, poucas pessoas falando português e mais o idioma indígena local. Porém, vemos jovens com celular, conectados, sonhando em estudar fora. É estranho para nós entendermos que ao mesmo tempo existe a valorização da cultura local, mas também jovens sendo jovens. E queremos mostrar como se dá esse deslocamento para eles", comenta ela. Ao registrar essa trajetória, o documentário quer estimular o espectador a ver, sob uma outra perspectiva, a realidade deles em Campinas: recebidos pela universidade e pelo município, comunidades majoritariamente não-indígenas, afastados da família e de sua cultura.

DIVERSIDADE ÉTNICA

Há uma preocupação do documentário em retratar a diversidade dos povos indígenas. Com a pequena amostragem dos seis estudantes, o filme busca discutir o quão diferentes os povos indígenas são em cultura, costumes, história, língua e realidade. "Queremos contribuir para romper com a visão que persiste em nossa sociedade que diz como os indígenas deveriam ser, imagina como eles teriam que viver, que muitas vezes é uma imagem limitada e preconceituosa. Precisamos conhecê-los minimamente e respeitá-los", comenta Juliana. Para tanto, os cineastas decidiram pela abordagem mais observativa, com uma"câmera recuada". A proposta é interferir menos e ouvir mais. "Estamos tentando trazer a diversidade indígena, destacando as diferenças dos povos que aparecem no filme, mas também conectando-os em suas semelhanças", detalha a cineasta responsável. 

MONTAGEM E FINALIZAÇÃO 

Com o término das gravações, que resultaram em mais de 50 horas de material bruto, o filme vai passar pelo processo de decupagem e montagem nos próximos meses. O cuidado é montar, na versão final, que deve ter em torno de 1h30, a essência das histórias de cada estudante e cada etnia, seus contextos e dilemas. Por enquanto, ainda não há previsão de estreia do documentário, mas há interesse dos diretores de inscrevê-lo em festivais de cinema e, futuramente, fazer exibições em espaços diversos.

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