mulher de fibra

Uma história de luta pelos negros

Laudelina de Campos Melo se tornou referência em Campinas na batalha contra o preconceito racial

Francisco Lima Neto
francisco.neto@rac.com.br
23/08/2020 às 02:25.
Atualizado em 28/03/2022 às 18:01
Laudelina ao lado de Jair Rodrigues: criadora do Concurso Pérola Negra (Divulgação)

Laudelina ao lado de Jair Rodrigues: criadora do Concurso Pérola Negra (Divulgação)

Laudelina de Campos Melo foi uma mulher negra, forte — como todas que nascem com a pele preta tem de ser —, que fez história e se destacou por todos os lugares por onde passou. Em Campinas, onde viveu até o fim de seus dias, lutou contra o apartheid velado que separava brancos e negros, criou o primeiro sindicato das domésticas, lutou contra o preconceito, e ainda criou o concurso Pérola Negra. Aquela mulher que deixaria seu nome marcado na história nasceu no dia da Santa Negra Padroeira do Brasil, em 12 de outubro de 1904, em Poços de Caldas. Era filha de Maria Maurícia de Campos Melo e Marcos Aurélio de Campos Melo, ambos beneficiados pela Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871, que declarava livres os filhos de mulher escravizada nascidos no Brasil a partir daquela data.  Ainda menina, aos 7 anos, já trabalhava como empregada doméstica. Aos 12 anos perdeu o pai de maneira trágica. Ele trabalhava cortando madeira e morreu depois de ser atingido por uma tora que tinha sido cortada. Por conta disso, Laudelina foi obrigada a abandonar a escola para cuidar de seus cinco irmãos menores e ajudar a mãe no preparo dos doces caseiros, compotas, geleias, entre outros. Desde cedo já despontava com espírito de liderança. Com 16 anos foi eleita presidente do Clube 13 de Maio, que promovia atividades recreativas e políticas para os negros de Poços de Caldas. Mudou para São Paulo aos 18 anos, com 20 já estava casada com Geremias Henrique Campos Mello. O casal partiu para Santos em 1924. Junto do marido, participou da agremiação Saudade de Campinas, grupo cultural negro de Santos. Depois da separação, em 1938, já com dois filhos, passou a ser mais atuante nos movimentos populares. Antes disso, em 1936, sua atuação passava a ter um tom ainda mais político e combativo com sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro. Nesse mesmo ano fundou a primeira Associação de Trabalhadores Domésticos do País, que teve de ser fechada durante o Estado Novo, instaurado pelo ditador Getúlio Vargas e que vigorou de 1937 a 1946. Assim que o período Vargas teve fim, a associação voltou a funcionar. Laudelina também foi uma das que lutou para a fundação da Frente Negra Brasileira, que chegou a ter 30 mil filiados na década de 30. Ela foi morar em Mogi das Cruzes, em 1948, convidada a gerenciar um hotel fazenda da família para a qual trabalhava como governanta. Assim que a patroa morreu, Laudelina perdeu o emprego. Nova luta em Campinas Laudelina passa a morar em Campinas a partir de 1955. Aqui ela começou outra luta, pois percebeu que os anúncios de empregos publicados na imprensa deixavam claro a preferência por mulheres brancas, enquanto as negras eram preteridas. Laudelina passou a protestar contra essa prática de publicidade. Fundou a Associação Profissional Beneficente das Empregadas Domésticas, em 18 de maio de 1961, para defesa dos direitos das empregadas domésticas e mediação dos conflitos entre patroas e empregadas, já que não havia legislação trabalhista para a categoria. Cerca de 1.200 trabalhadoras domésticas compareceram ao ato de inauguração da associação, que foi fundada nas dependências do Sindicato da Construção Civil de Campinas. Ela se juntou ao Movimento Negro de Campinas, participou de atividades culturais e sociais, especialmente com o Teatro Experimental do Negro (TEN), que visava elevar a autoestima e a confiança da juventude negra, com a formação de grupos de teatro e dança. Criou uma escola de música e de balé. Abriu uma pensão também e passou a vender salgados nos dois campos do Guarani e da Ponte Preta. A associação lutava contra o preconceito e trabalhava pela alfabetização das mulheres, como primeiro passo para a conscientização e reivindicação de direitos, além disso, também estimulava a solidariedade entre as trabalhadoras. Por conta de sua experiência, a partir de 1962 foi convidada para ajudar a organizar diversos sindicatos (ainda na forma de associações), como e de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas sem nunca deixar de lado a luta no movimento negro e feminista. Por conta do golpe militar de 1964, a associação tinha de ser fechada e, para evitar que isso ocorresse, a abrigou na União Democrática Nacional (UDN). Em 1968, Laudelina adoeceu durante o processo de sucessão da associação, o que levou a dissolução da entidade e a sua desvinculação do movimento de empregadas domésticas. Contudo, prosseguiu na defesa da categoria e se tornou referência nacional na briga pela regulamentação dos direitos das trabalhadoras domésticas. A atuação de Laudelina na década de 1970 foi fundamental para a categoria conquistar o direito à Carteira de Trabalho e à Previdência Social. As atividades da associação ficaram paradas em Campinas de 1968 a 1979, mas em 1982, procurada por antigas companheiras, trabalhou na reestruturação da entidade, permitindo que se transformasse em sindicato em 20 de novembro de 1988 — não por acaso, Dia da Consciência Negra. Concurso Pérola Negra no Teatro Municipal ganha repercussão nacional Assim que chegou a Campinas, a negra Laudelina de Campos Melo percebeu que de forma velada, às vezes nem tanto, estava em vigência um apartheid. Havia vários lugares onde a entrada de negros não era permitida, especialmente nos principais clubes da cidade. Além disso, os concursos de beleza excluíam as negras de suas passarelas. Os clubes da alta sociedade promoviam os bailes de debutantes para exibir o suprassumo da sociedade campineira. Pois Laudelina, que não era de baixar a cabeça e deixar as coisas passarem, resolveu agir e criar o Concurso Pérola Negra de Campinas, um evento de primeira, que foi visto com descrédito. Mas houve grande união de vários setores da sociedade negra, o que chamou a atenção do jornal Diário do Povo, que se tornou aliado. Outro poderoso apoiador foi a Associação Cultural dos Negros do Estado de São Paulo. Assim, houve impulso maior, atraindo entidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Americana, Franca, São Carlos e de todo o interior. Com esta força política, o movimento conseguiu fazer com que o evento ocorresse no Teatro Municipal de Campinas, berço da elite. Meses antes do evento, o poder de compra da comunidade negra deixou os comerciantes de Campinas de boca aberta. Miçangas, lantejoulas e toda sorte de enfeites para vestidos se esgotaram. Contudo, o palco e a passarela montados dentro do teatro pertenciam a um tradicional clube, que uma vez por ano promovia uma festa de apresentação de debutantes das famílias abastadas. A tal sociedade se recusava a permitir o uso, mesmo com o pagamento à mão. A elite branca, no entanto, ficou estupefata quando o baile chamou a atenção da revista O Cruzeiro, mais importante publicação da época. "Pela primeira vez no Brasil, a sociedade negra de uma cidade realizou um baile de gala e escolheu a sua rainha no ambiente suntuoso de um teatro municipal, congraçando-se numa festa que alcançou o mais amplo sucesso. Foi em Campinas (no estado de São Paulo), que o jornal Diário do Povo resolveu concretizar um dos velhos sonhos da numerosa família negra organizando e levando a efeito o concurso que escolheria a Pérola Negra de Campinas. Bastou que a ideia fosse anunciada para receber o integral apoio da Associação Cultural dos Negros do Estado de São Paulo”, trazia trecho da publicação em 1957. Entre as 20 inscritas venceu aquela que reunia simpatia, beleza, cultura e graça: Marcília Gama, militante da causa e uma verdadeira pérola. Foi coroada pelo vice-governador Porfírio da Paz, que, após tamanha repercussão, foi pessoalmente ao evento, selando de vez o sucesso da iniciativa. Laudelina também atuou junto a universidades brasileiras durante 30 anos. Perto de sua morte, foi eleita chefe do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Morreu em Campinas no dia 22 de maio de 1991, aos 86 anos, no mês da Abolição da Escravatura. SAIBA MAIS Em 1989 foi criada a ONG Casa Laudelina de Campos Melo, em Campinas. Além disso, ela deixou sua casa para o sindicato. O documentário Laudelina: Lutas e Conquistas, produzido em 2015 numa parceria entre o Museu da Cidade e o Museu da Imagem e do Som (MIS), de Campinas, celebra a história de vida da líder sindical. O filme combina a interpretação da atriz Olívia Araújo e trechos de uma entrevista com a ativista realizada em 1989. A Câmara de Campinas criou a Medalha Laudelina de Campos Melo em 2004, por iniciativa da ex-vereadora Maria José da Cunha (PT). O título é entregue em comemoração ao Dia Nacional dos Trabalhadores Domésticos, celebrado em 27 de abril. Ela também é homenageada com seu nome em uma rua no Parque Itajaí. Seu sobrenome era Melo, o de seu marido Mello, por isso aparece das duas formas em várias publicações.

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