A ginecologista e obstetra Daniela de Lima e Montes Castanho acredita que o congelamento de óvulos trouxe mais liberdade às mulheres, considerando-o uma das maiores conquistas femininas desde a introdução da pílula anticoncepcional (Kamá Ribeiro)
A deputada federal Érika Hilton (PSOL) enfrentou críticas de colegas da direita em 18 de abril por utilizar o termo "pessoas que gestam" para se referir às parturientes, incluindo mulheres e homens transgêneros que acabaram de dar à luz. No entanto, hospitais em todo o Brasil estão considerando adotar essa expressão, em meio ao avanço das técnicas de reprodução humana e da aceitação da diversidade de gênero, permitindo que outros membros da família, como avós, pais ou irmãs, também possam gerar a criança.
A ginecologista e obstetra Daniela de Lima e Montes Castanho apoia essa mudança linguística, argumentando que a linguagem deve refletir as necessidades humanas. "Pessoas que gestam, sim, é correto", afirma a especialista em reprodução humana, que já auxiliou o terceiro homem trans do Brasil a dar à luz.
Nascida em Campinas, Castanho cursou desde o ensino fundamental até o ensino superior na cidade. Graduada em medicina pela PUC Campinas, especializou-se em ginecologia e obstetrícia e, posteriormente, em reprodução humana, área que descobriu durante um estágio no Hospital Pérola Byington.
Castanho acredita que o congelamento de óvulos trouxe mais liberdade às mulheres, tornando- se uma das maiores conquistas femininas desde a pílula anticoncepcional. Ela também observa que a saúde da mulher tem evoluído no país, acompanhando o aumento da conscientização. Nesse contexto, a médica reconhece a importância da inteligência artificial, pois parte da identificação de possíveis anomalias genéticas pode ser realizada por meio da IA.
A convite do presidente-executivo do Correio Popular, Ítalo Hamilton Barioni, a dra. Castanho concedeu a seguinte entrevista.
A senhora nasceu aqui mesmo? Pode nos contar como tudo começou?
Nasci aqui em Campinas e meus pais, entre outras coisas, são professores. Isso foi fundamental na minha formação, pois sempre me ensinaram de uma maneira cativante, despertando meu desejo genuíno de aprender. Eu ia para a escola feliz. Eles me transmitiram tantos conhecimentos que, até mesmo durante o vestibular, eu me lembrava das suas vozes discorrendo sobre diversos assuntos. Sempre disse ao meu pai que tinha um grande interesse em medicina, em curar as pessoas, e emevitar que ficassem doentes. No entanto, ao mesmo tempo, sempre tive uma paixão por escrever, ler e atividades afins. Certa vez, meu pai me respondeu: "Conheço muitos médicos que são escritores, mas não conheço nenhum escritor que seja médico".
Onde a senhora realizou seus estudos iniciais?
Iniciei meus estudos no Colégio Progresso e posteriormente passei algum tempo no Dom Barreto e, em seguida, no Notre Dame, onde cursei da 5ª série até o 2º ano do ensino médio. Concluí o terceiro colegial de forma integrada no Ângulo. Lembro-me que naquela época todas as minhas amigas estavam planejando viajar para lugares como Paraty e o sul de Minas Gerais, enquanto eu não podia, pois estava focada em ingressar na faculdade de medicina. Felizmente, fui aceita na PUC-Campinas, o que foi crucial para minha formação acadêmica. No início, minha intenção era seguir a carreira de cardiologista, mas acabei me apaixonando pela anatomia. Tive a oportunidade de ser preceptora na disciplina de anatomia, o que fortaleceu ainda mais meu interesse. Foi durante meus estudos que descobri a ginecologia, e ainda como estudante, realizei meu primeiro parto. Essa experiência me encantou tanto que decidi que era essa a área na qual eu queria atuar. Realizei estágios na Maternidade de Campinas durante o 4º, 5º e 6º anos da faculdade.
Isso consolidou sua certeza emseguir a ginecologia?
Sim, gostei tanto da Maternidade, que é o local onde mais nascem crianças em Campinas, que optei por não fazer residência em outro lugar e permanecer lá mesmo.
Realizar partos de diversas formas e em grande quantidade era o que eu mais desejava. Minha residência foi uma experiência muito enriquecedora.
Posteriormente, tive a sorte de ter meu preceptor conseguir um acordo para que os residentes da Maternidade pudessem fazer estágio no Hospital Pérola Byington, nos departamentos de uroginecologia e ginecologia endócrina. Eu fui para lá, fiz as duas especialidades e tive contato com a equipe de reprodução, que já realizava fertilização naquela época, por volta de 1995. Então, pedi ao meu preceptor para trocar o estágio, optando pela área de reprodução em vez da uroginecologia, e fiquei muito feliz quando isso foi possível.
Era como se eu estivesse no meu próprio mundo!
E depois?
Ali, um dos principais especialistas em reprodução tinha uma cirurgia agendada e precisava realizar a captação de óvulos de uma paciente que possuía apenas um folículo - a estrutura que contém o óvulo. Ele virou para mim e disse: "Você pode fazer isso? Mas há apenas uma chance de sucesso". Com a paciente tendo apenas um óvulo, a pressão era grande. Introduzi a agulha no folículo, aspirei o líquido folicular e entreguei à bióloga para a busca do óvulo.
Na primeira tentativa, não encontramos o óvulo. Então, improvisei, utilizando um meio de cultura para lavar e aspirar o folículo novamente. Desta vez, tivemos sucesso. O chefe da equipe havia me prometido que, caso eu conseguisse capturar o óvulo, deixaria de ser estagiária e seria promovida a chefe da equipe. E assim foi.
O óvulo sobrevive quanto tempo fora do corpo?
Primeiramente, é importante ressaltar que o óvulo não sobrevive por si só e requer um meio de cultura rico em nutrientes para seu desenvolvimento. Após a aspiração, o óvulo é imediatamente colocado em contato com o espermatozoide do doador selecionado, visando formar o embrião no dia seguinte.
É fundamental manter a manipulação dos óvulos ao mínimo possível, a fim de promover o desenvolvimento ideal do embrião, que será transferido para o útero da mãe cinco dias após a fertilização.
A inserção é feita de que forma?
Trata-se deum processo delicado. Inicialmente, administra-se uma sedação leve, seguida pela inserção de um cateter fino por via transvaginal, com extrema cautela.
A técnica é sofisticada, mas a prática parece ser relativamente simples…
Sim, são muitos detalhes envolvidos. Durante a transferência do embrião, utilizamos um cateter contendo os embriões, que é cuidadosamente inserido através do colo do útero, passando por um orifício interno específico.
Uma vez que o cateter está posicionado, informamos à embriologista para montar umsegundo cateter, ainda mais fino, que é inserido dentro do primeiro cateter. Sob orientação ecográfica, então procedemos à inserção do líquido contendo um ou dois embriões dentro do útero.
É uma imagem impressionante poder observar o líquido sendo injetado.
Quando a senhora começou, essa técnica estava estava praticamente no início. Que evolução ocorreu nesse período?
A primeira fertilização in vitro no mundo ocorreu em 1978, em Cambridge, pelas mãos de Robert Edwards, resultando no nascimento de Louise Brown, que ainda está viva. Naquela época, o procedimento era bastante artesanal e realizado pela barriga, mas mesmo assim, foi bemsucedido, após várias tentativas fracassadas de outros especialistas. Posteriormente, na Bélgica, foi desenvolvidoum microdispositivo que permitia segurar o óvulo e inserir o espermatozoide com precisão. Desde então, houve uma evolução contínua na medicina reprodutiva.
Um dos avanços mais significativos durante esse período foi o desenvolvimento da técnica de congelamento de óvulos, que representou ummarco importante no empoderamento das mulheres. Agora, é possível congelar óvulos em idade fértil, quando ainda possuem qualidade, reduzindo assim os riscos de complicações e síndromes associadas ao envelhecimento feminino.
Qual é a faixa etária ideal para o congelamento de óvulos?
É recomendado dosar o hormônio antimülleriano e realizar uma ultrassonografia dos folículos durante o check-up ginecológico anual, para avaliar a reserva ovariana da paciente. Alguns pacientes podem começar a ter uma diminuição precoce na reserva de óvulos, já aos 26 ou 27 anos. No entanto, tradicionalmente, seguimos o slogan "trintou, congelou", indicando que os 30 anos são uma idade ideal para considerar o congelamento de óvulos.
Até que idade a mulher pode receber um óvulo fecundado?
Segundo o Conselho Federal de Medicina, até os 50 anos, podemos realizar o procedimento sem a necessidade de comunicação prévia. No entanto, se a paciente tiver 51 anos ou mais, é obrigatório enviar ao CFM uma cópia do nosso relatório médico, um parecer do cardiologista atestando suas condições de saúde, bem como um parecer do psiquiatra, entre outros documentos, seguindo um protocolo rigoroso para determinar sua elegibilidade para o procedimento.
Existem casos em que o procedimento não
dá certo?
Geralmente, quanto mais jovem a paciente, melhor a qualidade dos óvulos, o que afeta diretamente a taxa de sucesso do procedimento. Essa taxa de sucesso varia conforme a faixa etária da paciente. Se considerarmos todas as idades em conjunto, poderíamos dizer que metade das pacientes engravida e a outra metade não. No entanto, é importante ressaltar que a idade da mulher é um dos fatores que mais impactam nesse resultado.
Como é lidar com a expectativa dos pais? Como se trabalha a questão psicológica? O problema de fertilização geralmente é mais comumno homem ou na mulher?
Na primeira consulta, é importante que ambos os parceiros estejam presentes, pois é o casal que engravida, e em muitos casos, o problema pode residir no homem. Na minha prática, enfatizo a importância da presença dos maridos nessa fase inicial.
Em termos gerais, aproximadamente 30% dos casos de infertilidade são atribuídos ao homem, outros 30% à mulher, 30% a uma combinação de fatores de ambos os parceiros, e os restantes 10% são categorizados como Infertilidade Sem Causa Aparente (ISCA). Diante dessa distribuição, é essencial que os homens enfrentem o espermograma.
Durante a consulta, trabalho para que o casal sinta que estamos juntos para ajudá-los a realizar o sonho da parentalidade, o que, quando alcançado, é uma grande satisfação para todos nós.
Há um trabalho psicológico para lidar com as frustrações também?
Sim, é fundamental que o casal esteja completamente envolvido em todas as etapas do processo. Embora seja relativamente rápido, surgem muitas dúvidas ao longo do caminho.
O tratamento envolve o uso de várias medicações e requer cooperação mútua. A presença do marido ao lado da esposa durante todo o processo é essencial, pois proporciona um ambiente mais relaxado para a mulher.
Existe a possibilidade de gêmeos, trigêmeos e outros múltiplos?
Atualmente, contamos com regras claras para evitar a ocorrência de gravidezes múltiplas, visando mitigar os riscos associados a essa condição. Gravidezes múltiplas apresentam uma série de complicações, incluindo maior probabilidade de parto prematuro emenor taxa de sobrevivência dos bebês, além de aumentar as chances de problemas de saúde decorrentes da prematuridade. A mãe também enfrenta riscos aumentados de desenvolver hipertensão gestacional, diabetes gestacional e outras complicações durante a gravidez.
Qual é a razão para isso ocorrer antes e não mais agora?
Anteriormente, era comum que os pacientes, após passarem muitos anos na fila de espera, optassem por transferir todos os embriões disponíveis de uma vez, na tentativa de aumentar suas chances de sucesso. Isso frequentemente resultava em gravidezes múltiplas. Atualmente, a abordagem mudou: os embriões são transferidos com base na idade da paciente, uma vez que o útero de mulheres mais jovens apresenta maior probabilidade de aceitação e implantação. Além disso, agora realizamos uma análise genética dos embriões, o que nos permite identificar alterações genéticas. Embriões com anomalias têm menor chance de implantar e, se implantados, apresentam maior risco de aborto.
Vale ressaltar que bebês nascidos com síndrome de Down representam apenas uma pequena parte dos casos. Na maioria das vezes, a natureza elimina embriões com anomalias genéticas ainda no útero, muitas vezes de forma tão precoce que passa despercebida pela paciente, sendo confundida com um ciclo menstrual alterado, mas já é um aborto.
Neste contexto, a inteligência artificial desempenha um papel crucial. Atualmente, parte da identificação de anomalias genéticas é realizada por meio da IA, que tem se aprimorado na detecção de características genéticas que por vezes passam despercebidas pelos especialistas. Os estudos nessa área estão avançando, e a eficácia na resolução desses casos está aumentando constantemente.
Não é possível interferir na cadeia?
É possível identificar anomalias genéticas nos embriões, porém, não é possível corrigi-las. No entanto, uma vez identificadas, podemos optar por não implantar esse embrião específico na mulher, considerando que nem todos os embriões apresentarão irregularidades genéticas. Em caso de necessidade, existe a opção de utilizar óvulos de outra mulher.
Durante a gestação, é possível identificar previamente se haverá alguma síndrome?
Identificamos amaioria das anomalias genéticas pelos cromossomos, porém, algumas estão localizadas em genes específicos dentro dos cromossomos, o que torna sua identificação mais desafiadora.
A estimulação da gravidez é semelhante à concepção natural?
Na maioria das vezes, os óvulos da mulher não são retirados durante a ovulação natural, mas sim através de estimulação hormonal. Por vezes, coletamos os óvulos em um ciclo e os transferimos no ciclo seguinte, após complementação hormonal.
Nesse cenário, a gravidez nos primeiros 12 semanas é considerada delicada, com risco aumentado de aborto. No entanto, após esse período, a gestação segue um curso normal.
Durante a fase em que a mulher está tentando engravidar, ela fica emocionalmente vulnerável. Na sua experiência, a senhora percebe umoportunismo por parte da indústria farmacêutica, como a venda de vitaminas que prometem melhorar a qualidade do óvulo e oferecem resultados milagrosos?
Infelizmente, esse é um terreno fértil para esses tipos de promessas. Muitas mulheres acreditam que uma determinada vitamina pode fazer toda a diferença, que será o fator decisivo para o sucesso da gravidez.
Para nós, o mais crucial é que a mulher esteja tomando ácido fólico durante o processo de tentativa de engravidar, mas há quem prometa resultados milagrosos com outras vitaminas.
É um momento em que o casal se agarra a qualquer esperança, alimentando fantasias e acreditando que uma simples composição vitamínica pode ser a solução para seus problemas.
Então, em termos de nutrição, isso não é possível?
Não existe. É um mito!
Existe algum serviço do SUS que ofereça tratamentos de reprodução humana?
Sim, de fato existem diferentes níveis de complexidade nos tratamentos de fertilidade, e ambos são oferecidos pelo SUS. Os tratamentos de alta complexidade geralmente envolvem fertilização in vitro, realizada fora do útero. Já os tratamentos de baixa complexidade incluem a inseminação intrauterina, onde o processo ocorre dentro do corpo da mulher.
Como está a situação da saúde da mulher? Houve avanços nos últimos anos?
Sim, atualmente operamos em uma rede integrada de serviços de saúde. Isso significa que, durante uma consulta ginecológica, podemos identificar outros exames que ainda não foram realizados e orientar a paciente a realizá-los. Isso simplifica bastante o processo em geral.
Além disso, observamos uma melhoria crescente na conscientização das pessoas, o que tem contribuído significativamente para a prevenção de várias condições de saúde.
Recentemente, a deputada Érika Hilton, do PSOL, causou alvoroço na Câmara dos Deputados ao utilizar o termo "pessoa que gesta" em vez de "mãe". Deputados da ala direita a acusaram de desvalorizar a maternidade. Qual é a sua avaliação sobre essa questão?
Considero isso correto, sim. As sociedades evoluem e, consequentemente, o vocabulário também precisa se adaptar. O termo "pessoa que gesta" é adequado. Atendi um caso em que um homem trans, casado com uma mulher cisgênero, desejava ter um filho. No entanto, devido à idade mais avançada da esposa, eles enfrentavam dificuldades para conceber.
Nesse contexto, ele decidiu gestar o bebê, mas isso não o torna a mãe. Ele é o pai. Portanto, não é apropriado referir-se a ele como mãe, pois isso não seria respeitoso. É por isso que o termo "pessoa que gesta" está sendo adotado por hospitais e profissionais de saúde, refletindo uma abordagem mais inclusiva e respeitosa.
Como está a relação entre religião e reprodução humana?
Atualmente, a situação está muito mais tranquila. O principal desafio reside no descarte de embriões, uma questão em que a religião ainda exerce certa influência. Na verdade, o excesso de embriões é um problema global. Para lidar com isso, temos nos esforçado para evitar a produção excessiva de embriões. No geral, em resposta à pergunta, a influência da religião não tem sido tão significativa quanto antes.Atualmente, a situação está muito mais tranquila.
O principal desafio reside no descarte de embriões, uma questão em que a religião ainda exerce certa influência. Na verdade, o excesso de embriões é um problema global. Para lidar com isso, temos nos esforçado para evitar a produção excessiva de embriões. No geral, em resposta à pergunta, a influência da religião não tem sido tão significativa quanto antes.
Com uma rotina de trabalho tão intensa, comoa senhora costuma aliviar as tensões?
Sou apaixonado por esportes, em especial a natação. Embora minha casa não tenha luxos como mármore carrara, construí uma piscina olímpica de 25 metros, onde passo boa parte do meu tempo nadando. Além disso, tenho me aventurado no beach tênis e pratico uma variedade de atividades ao ar livre, como ciclismo em Joaquim Egídio, trilhas e caminhadas. Tenho um grande interesse por idiomas, embora ultimamente tenha tido pouco tempo para me dedicar a eles. Atualmente, falo inglês e francês.
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