Proposta foi enviada à Câmara; intuito é arrecadar recursos para financiar projetos nas áreas de assistência social, esportes e cultura
Secretário de Justiça de Campinas, Peter Panutto diz que medida está embasada na Constituição Federal e em entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF): ‘um dos fundamentos foi o de que as loterias são consideradas serviços públicos, podendo, portanto, serem exploradas pelos demais entes federativos, assim como ocorre com os serviços de água e esgoto’ (Alessandro Torres)
A Prefeitura de Campinas protocolou na sexta-feira (15) na Câmara de Vereadores um Projeto de Lei Complementar (PLC) para a criação de uma loteria municipal. Ela seria implantada por meio do serviço de Loterias do Município de Campinas (Locamp), com o objetivo de levantar recursos financeiros para programas e projetos nas áreas de assistência social, esportes e cultura. A proposta vai na esteira de legislação semelhante promulgada por várias cidades brasileiras, mas especialistas apontam que a iniciativa é inconstitucional.
De acordo com o secretário municipal de Justiça, Peter Panutto, o PLC foi feito com base em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou que a exploração de loterias não é exclusividade da União, o que abre espaço para elas serem geridas também pelos demais entes federativos, Estados e cidades. “Caso o município decida pela criação desse serviço, será uma forma de incrementar os recursos destinados às atividades-fim das seguintes secretarias: Cultura e Turismo; Esportes e Lazer; Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos”, afirmou.
No caso de Campinas, o PLC deverá ser apensado ao projeto de lei de autoria do vereador Jair Quinália, o Jair da Farmácia (Solidariedade), que tem a mesma finalidade e está em tramitação há quatro meses. O PL nº 201, protocolado em 14 de agosto, autoriza a exploração do serviço público de loterias em Campinas. A proposta da Prefeitura seguirá em separado apenas se o parlamentar pedir o arquivamento de seu projeto.
O PL do vereador aponta como possíveis modalidades da loteria o bilhete numerado, que pode ser físico ou virtual, loteria de prognósticos numéricos, de prognósticos esportivos e loteria instantânea. A formatação final caberá ao operador do serviço. “A fixação dos valores das apostas, os bilhetes previamente numerados e as respectivas frações de cartelas raspáveis será de responsabilidade exclusiva dos agentes operadores das loterias municipais”, explicou Jair da Farmácia.
PREMIAÇÃO
Pela proposta, a comercialização ficará a cargo exclusivamente de empresas brasileiras autorizadas pela legislação nacional vigente. Elas deverão ter sede e administração no país. O PL 201, que depois foi convertido pelo Projeto de Lei Complementar nº 79/2023, ainda não avançou para as comissões internas da Câmara. A mudança em PLC foi feita após orientação da procuradora do Legislativo Rafaela Barbosa, por se tratar de uma proposta de concessão ou permissão de serviço público.
Porém, o parecer dado por ela “não aborda outros aspectos atinentes à constitucionalidade e à legalidade do projeto”. Pela proposta do vereador, o valor das apostas para seguridade social deverá seguir o percentual destinado pela União. A Caixa Econômica Federal explora atualmente 11 loterias de várias modalidades no país, com parte do dinheiro arrecadado sendo dividido por órgãos do governo para os chamados “repasses sociais” e indo para o pagamento de impostos.
No caso da Mega Sena, a loteria mais popular, menos da metade do que é arrecadado (43,5%) vai para o prêmio. Em 2022, os brasileiros gastaram o valor recorde de R$ 23,2 bilhões com apostas nas loterias, de acordo com a Caixa Econômica Federal. O montante representou um crescimento de 25,7% em comparação aos R$ 18,5 bilhões arrecadados em 2021. Já o valor destinado aos prêmios ofertados em todas as loterias foi de R$ 8 bilhões no ano passado. Além da Mega Sena, há ainda a Lotofácil, Lotomania, Quina, Dupla Sena, Dia de Sorte, +Milionária, Super Sete, Loteca, Loteria Federal e Timemania.
OUTRAS CIDADES
Os PLCs de Campinas sucedem uma série de leis municipais, de outras cidades, de aprovação de loterias locais, mas nenhuma foi efetivamente criada. A fila de municípios interessados em explorar a aposta em jogos foi puxada por Guarulhos (SP), que promulgou a lei nº 7.912 em junho de 2021. Em pleno agravamento dos problemas econômicos pela pandemia de covid-19, a justificativa apresentada pelo prefeito Gustavo Henric Costa (PSD), o Guti, foi que “períodos de crise exigem que pensemos em alternativas para a aquisição de recursos. Com a medida, Guarulhos pode se tornar a primeira cidade do Brasil a dispor de um serviço como esse”.
No entanto, passados dois anos e meio, a nova loteria continua apenas no papel. Não há previsão de lançamento. Meses depois, outras duas cidades paulistas – Jundiaí e Poá – avançaram com iniciativas de criação de loterias que, até hoje, não receberam nenhuma aposta. Em 2023, a iniciativa voltou a ganhar fôlego no país. Outros municípios também caminharam nesse sentido, como Porto Alegre (RS), Teresina (PI), Foz do Iguaçu (PR), Atibaia (SP) e Taubaté (SP).
A Loteria Taubateana e a da capital gaúcha têm previsão de lançamento em 2024, mas até agora não foi aberta a licitação pública para escolha da empresa que implantará o jogo. A Prefeitura de Teresina chegou a discutir com o governo do Distrito Federal, em setembro, o lançamento da oferta de jogos da sorte e títulos de capitalização por meio do Banco de Brasília. A ideia, entretanto, segue na fase de planejamento. “Os serviços que a loteria vai ofertar ainda serão detalhados. Estamos trabalhando na legislação. Nós não vamos fazer o trabalho que uma lotérica faz, não é o foco. A nossa loteria será especificamente de sorteios e, eventualmente, título de capitalização. Será algo nessa linha”, justificou o secretário municipal de Governo, Michel Saldanha. Atibaia e Foz do Iguaçu não têm previsão para o lançamento da licitação para a loteria.
LEGALIDADE JURÍDICA
Para advogados especialistas em Direito Administrativo, o lançamento de jogos municipais é inconstitucional. “Entende-se pela impossibilidade, sobretudo em razão das disposições constitucionais quanto à competência dos entes federados, uma vez que não há, no rol de competências dos municípios, constante do artigo 30 da Constituição Federal, nenhuma menção à exploração de loterias”, argumentou a advogada Anna Florença Anastasia.
Para ela, o julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) nº 492 e nº 493, bem como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.986, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano de 2020, deixaram claro que a exploração de loterias não é exclusividade da União, mas somente podem ser realizada também pelos Estados, não pelos municípios. “Demonstra-se preocupante, assim, a iniciativa de alguns municípios, como Guarulhos e Porto Alegre, que, por meio de suas respectivas Câmaras de Vereadores, aprovaram a implantação e exploração de loterias próprias. Não há, até o presente momento, respaldo legislativo ou tampouco jurisprudencial para a criação de serviços lotéricos municipais”, afirmou, por sua vez, o advogado João Rachid Motta.
“Dessa maneira, sem lastro jurídico consistente, a instituição de jogos lotéricos pelas prefeituras apresenta elevado grau de insegurança jurídica, um risco às próprias administrações municipais, além de seus parceiros e investidores, uma vez que sua concepção emerge no mundo jurídico com diversos vícios que podem causar uma interrupção abrupta de eventual contrato firmado com os municípios. Como diz o ditado popular, 'cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém'”, completou.
No entanto, o secretário de Justiça de Campinas, Peter Panutto, tem um entendimento diferente quanto às decisões legais. “Um dos fundamentos foi o de que as loterias são consideradas serviços públicos, podendo, portanto, serem exploradas pelos demais entes federativos, assim como ocorre com os serviços de água e esgoto, por exemplo”, justificou. Ele acrescentou que o ministro Gilmar Mendes, do STF, declarou em seu voto que “dessa forma, em resumo, a mim me parece acertado inferir que as legislações estaduais (ou municipais) que instituam loterias em seus territórios tão somente veiculam competência material que lhes foi franqueada pela Constituição”.
“Portanto, a despeito de haver entendimento em sentido contrário, entendo que o projeto de lei complementar para criação da Locamp está amparado na Constituição Federal e no entendimento do Supremo Tribunal Federal”, esclareceu Peter Panutto.
LOTERIA PAULISTA
A Secretaria Estadual de Parcerias em Investimentos (SPI) anunciou a abertura na próxima quinta-feira (21) de audiência pública para lançamento de uma loteria paulista. As sugestões poderão ser enviadas até o dia 31 de janeiro de 2024.
O projeto prevê a arrecadação de mais de R$ 3 bilhões em outorgas e investimentos na ordem de R$ 500 milhões durante o período de 15 anos da concessão. De acordo com o governo do Estado, a arrecadação será utilizada para reforçar o custeio de ações voltadas à assistência e à redução da vulnerabilidade social no Estado, beneficiando, por exemplo, os serviços de saúde. A concorrência para escolha da empresa que implantará a loteria paulista será feita por leilão.
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