Dois habitantes de Nova Odessa foram resgatados após mais de 10 dias em um abrigo; policial civil campineiro que foi ao Sul decreta: “pior tragédia que já vi na minha vida”
O policial civil Cezar Emanuelli mora em Campinas, trabalha em Americana e já atuou no desastre ambiental ocorrido na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais: cenário devastador e prejuízo incalculável (Arquivo Pessoal)
A tragédia ambiental no Rio Grande do Sul, com chuvas que afetaram mais de 90% do Estado e culminaram em mais de uma centena de mortos e feridos, dezenas de desaparecidos e mais de 500 mil pessoas desabrigadas, também resultou em uma expressiva rede de solidariedade que atravessou as fronteiras da região Sul do Brasil. A reportagem do Correio Popular colheu relatos de pessoas que estiveram – ou ainda estão – nos locais atingidos, atuando em resgates e promovendo ações sociais, além de moradores da RMC que estavam no Rio Grande do Sul e conseguiram voltar para o interior de São Paulo.
Habitantes de Nova Odessa, o casal José Ronaldo dos Santos e Adriana Pereira da Silva estava em Canoas, localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre. No dia 3 de maio, por volta das 20h, a água começou a sair pelo bueiro da rua da casa onde a dupla estava hospedada, no bairro Mathias Velho. Após perderem o carro e outros itens, como kits de enxovais, José Ronaldo e Adriana encontraram refúgio em uma igreja, que possuía dois andares. Durante a madrugada, no entanto, a situação piorou. “Por volta das 3h da manhã, a água começou a invadir a escada e foi uma loucura, um desespero total. Ficamos em pânico. No sábado, dia 04/05, por volta das 16h30, conseguimos ser resgatados, mas nós passamos por momentos muito difíceis e achamos que não iríamos sair de lá vivos por conta da água que subia muito rápido. Foi uma verdadeira tragédia”, relatou o casal via assessoria de imprensa da Prefeitura de Nova Odessa.
Ainda de acordo com Adriana Pereira da Silva, em meio a tanto desespero e angústia acontecendo na vida dela e do companheiro, eles conseguiram contato com autoridades de Nova Odessa por meio das redes sociais, sendo enfim resgatados. Foram mais de 10 dias em um abrigo de Canoas. “Sinceramente, achei que a equipe não conseguiria nos resgatar, pois estávamos mais de duas horas distantes da cidade de Bento Gonçalves, onde eles estavam. Mas em pouco tempo chegaram e conseguimos sair”, afirmou.
VOLUNTARIADO
O policial civil Cezar Emanuelli, morador de Campinas e que trabalha em Americana, conhece bem o que é ser voluntário no combate de uma tragédia. Com a experiência de ter atuado no resgate das vítimas do desastre ambiental em Brumadinho (MG), ele foi para Porto Alegre de carro com um grupo de uma igreja de Piracicaba. Foram 22h de trajeto, e a dificuldade já começou na estrada. “Fomos para o Rio Grande do Sul em seis carros, com itens para doação e barcos para ajudarmos no salvamento de pessoas e animais. Chegamos no dia 6 de maio, ápice da enchente, com as pistas perto da capital alagadas. O único acesso era pela cidade de Viamão, em um trecho de pista simples. Ficamos com muito medo, pois se a água subisse maisum metro estaríamos ilhados, sem energia elétrica e sem sinal de celular”, relatou.
Após a chegada na capital gaúcha, o grupo de Cezar Emanuelli juntou-se a outros voluntários do Rio Grande do Sul e de outras partes do Brasil no resgate pelas ruas da cidade e de outros municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre. "A criminalidade estava em alta, com histórias de furtos e roubos de doações, de barcos. E os pedidos de salvamento chegavam o tempo todo, de idosos e animais ilhados, de remédios que precisavam ser recuperados para pessoas necessitadas. Era um climamuito difícil, mas de muita solidariedade.”
Perguntado sobre o que foi possível destacar considerando essa experiência, Cezar Emanuelli foi taxativo ao comparar a situação no Rio Grande do Sul com o que testemunhou como voluntário em Brumadinho, cidade que sofreu com um rompimento de barragem que deixou 272 mortos no início de 2019. “O cenário de devastação foi muito pior (no RS). Além das vidas perdidas, vai ser um prejuízo financeiro incalculável, com as pessoas perdendo absolutamente tudo. Sem dúvidas, é a pior tragédia que já vi na minha vida”, contou. Apesar disso, o policial civil pretende retornar para a linha de frente, mas de forma oficial, auxiliando, em uma espécie de mutirão do poder público, a identificação dos mortos na tragédia.
O médico ortopedista e presidente da ONG Expedicionários da Saúde, Dr. Ricardo Affonso Ferreira, está há dez dias no Rio Grande do Sul com mais oito pessoas da equipe. Os voluntários da entidade sediada em Campinas estão percorrendo vários abrigos das cidades do Vale do Taquari, uma das regiões mais impactadas pelas chuvas, oferecendo atendimentos de infectologistas e de clínicos, além da distribuição de medicamentos.
Segundo o especialista, o cenário no Estado é de puro caos, com estradas interditadas, pessoas desabrigadas e umimpacto estrutural bastante intenso, especialmente no sistema de saúde. “Muitos lugares seguem inundados e várias pessoas continuam desabrigadas, incluindo algumas que estão dormindo na beira das estradas. É terrível. Apesar disso, graças ao espírito de união das pessoas, as coisas estão relativamente organizadas nos locais sem enchentes.”
Ainda de acordo com o médico, os riscos de doenças se espalharem quando o nível das águas baixar no Rio Grande do Sul é enorme. “Doenças infecciosas, intestinais e respiratórias devem surgir. Casos de leptospirose, por exemplo. Para evitar um surto generalizado, é ideal que itens como luvas, botas e roupas especiais sejam utilizados durante a limpeza das casas e dos locais atingidos, mas o foco neste momento é o acolhimento imediato aos desabrigados. O que estamos fazendo aqui, se eu puder falar dessa maneira, é tentar deixar o inferno menos quente”, pontuou.
ESPERANÇA
O casal de moradores de Sumaré, Vanessa Aparecida Silva Nigris e Geovane Nigris Martins, entrou em pânico ao ver as primeiras imagens da tragédia no Rio Grande do Sul, com especial atenção aos alagamentos em Porto Alegre. A preocupação era enorme, pois a tia paterna de Geovane, a aposentada Eonice Martins Nunes, de 87 anos, foi uma das pessoas afetadas na capital gaúcha. Morando sozinha em um apartamento no bairro Humaitá, localizado perto da Arena do Grêmio, ela possui vários problemas de saúde – em especial um câncer de mama que ela já trata há mais de 15 anos.
Após deixar o apartamento e se refugiar em outro do mesmo prédio, no quarto andar, pertencente a uma amiga, a idosa ficou quatro dias no local. Na sequência foi resgatada e levada para outro apartamento em uma parte mais elevada de Porto Alegre. Ela e a amiga permaneceram no imóvel por mais dois dias, até serem levadas para a cidade de Torres, localizada no litoral do Estado. De lá, Eonice foi levada de carro até Florianópolis (SC), onde embarcou em um avião para Campinas e chegou a Sumaré no dia 11 de maio.
Segundo Vanessa, a família ficou muito insegura e assustada com o que estava acontecendo no Rio Grande do Sul. “Apesar da família do meu marido ser de lá, aqui não tínhamos dimensão do que estava ocorrendo. Estávamos muito preocupados com ela (Eunice), principalmente no trajeto para chegar em Campinas. Foi um alívio quando ela conseguiu chegar aqui”, explicou.
A aposentada teve de deixar o apartamento onde mora em Porto Alegre apenas com a roupa do corpo, um celular, documentos pessoais, cartões de banco e com o aparelho auditivo que precisa usar. Na visão dela, que disse nunca ter visto algo do tipo em mais de 30 anos que mora no local, tudo o que houve foi um grande choque. "Ficamos muito assustados quando a água começou a aparecer na rua, pois moro no térreo. A água continuou subindo e aí tivemos de sair. Depois de tudo isso, felizmente estou bem e recebendo medicamentos para os meus tratamentos."
DOAÇÕES
O Dia D de socorro para vítimas das enchentes do Rio Grande do Sul vai acontecer no próximo sábado, 25, em Campinas no Paço Municipal (Avenida Anchieta, 200, Centro). As equipes vão receber as doações para ajudar o Estado e também para a Campanha do Agasalho de 2024, em esquema de drivethru. Serão coletados diversos itens, como roupas, água, alimentos (inclusive comida enlatada, além de produtos não perecíveis), brinquedos, materiais de limpeza (equipamentos e produtos) e rações animais. Segundo a Administração Municipal, é importante tomar cuidado para não enviar itens em mau estado de conservação.
Até o momento já foram mandados mais de 127,5 toneladas de donativos para as vítimas das enchentes do Rio Grande do Sul. A primeira carreta, enviada em 6 de maio, além de alimentos, levou 20 mil copos e 300 litros de água e meia tonelada de roupas. No mutirão de 11 de maio foram arrecadadas 72 toneladas de produtos, que seguiram em três carretas. No dia 15 de maio, mais uma carreta com 39 toneladas de doações seguiu. No dia 20 de maio, foram 15 toneladas, entre comidas, roupas, água e ração animal.
Mais informações sobre o Dia D e a campanha em Campinas podem ser acessadas pelo site https://campinas.sp.gov.br/sites/campanhadoagasalho2024/ e também pelos telefones (19) 2116-0165 ou (19) 2116-0281.
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