Tradicional edificação, que passa pela maior intervenção de sua história centenária, deve ser devolvida à cidade com atraso
A equipe de reportagem do Correio Popular teve acesso ao interior do canteiro de obras ontem e acompanhou o progresso dos trabalhos de restauração (Kamá Ribeiro)
As memórias de José Antônio Peres, conhecido como Toni da Feijoada, sobre o Mercado Municipal de Campinas contrastam com o atual panorama do local, que está em obras desde maio do ano passado. Aos 66 anos de idade, Toni relembra sua chegada ao icônico Mercadão há meio século, recordando da agitação matinal durante a abertura diária às 5h. Ao longo desses anos, amigos faleceram, estabelecimentos comerciais fecharam suas portas e o cenário mudou, porém, a atmosfera permanece inalterada. "Não consigo imaginar minha vida sem a interação com os clientes, as negociações e o calor humano que o Mercadão proporciona todos os dias", afirma o comerciante.
Alvo de paixão duradoura não apenas de Toni, mas também de numerosos outros comerciantes, o Mercadão celebra na sexta-feira (12) 116 anos de história em meio à sua mais significativa intervenção desde sua inauguração. O edifício está em transição para uma nova fase, com características mais contemporâneas, embora mantendo a essência da arquitetura mourisca concebida pelo renomado arquiteto Ramos de Azevedo.
A equipe de reportagem do Correio Popular teve acesso ao interior do canteiro de obras na quarta-feira (10) e acompanhou o progresso dos trabalhos. A conclusão da intervenção, inicialmente prevista para maio, dificilmente será alcançada dentro do prazo, conforme admitido pela própria equipe responsável pela obra. Apesar disso, figuras tradicionais do Mercado celebram o avanço da reforma e a perspectiva de inaugurar mais um capítulo na longa história do local.
"Há 40 anos que estou neste mercado, desde os meus 17 anos. Estou muito contente em ver o progresso da reforma e nutro a esperança de que esta será a melhor reforma já realizada", declara Maurício Mancine, 57 anos, também conhecido como "Tocão". Caracterizado por sua fala firme e concisa, o proprietário da M.C. Carnes revela que a loja já tem 70 anos de história no mercado e atravessa gerações da família. "Comecei com meu pai aos 17 anos. Ele, por sua vez, entrou com meu avô, e agora meus filhos estão assumindo o negócio. Tenho clientes que compram aqui há 30 anos, amigos em abundância, e asseguro que enquanto eu tiver saúde, continuarei trabalhando neste lugar", conclui.
PROGRESSO DA OBRA
Envolto por tapumes que delimitam os espaços de comércio do Mercado, o edifício apresenta uma aparência consideravelmente diferente do habitual. As paredes exteriores exibem sinais de desgaste, preparandose para o processo de restauração. O corredor que leva aos boxes externos agora exibe um piso danificado, enquanto os entulhos removidos diariamente se acumulam ao redor. Metade do telhado, antes revestido com telhas de amianto, foi substituída por telhas de barro, enquanto a entrada adjacente à Rua Barreto Leme recebeu um novo contrapiso, mais plano e largo que o anterior.
No interior do mercado, o piso permanece de terra batida, com valas cortando os corredores. Nesta fase, o foco é na interligação da rede de esgoto, solucionando um antigo problema de mau cheiro que afetava a área interna. Além disso, estão sendo instaladas tubulações de gás para abastecer os restaurantes.
Uma novidade na estrutura centenária é o mezanino que abrigará quatro lanchonetes, cuja montagem está em fase final. Segundo a Secretaria de Infraestrutura (Seinfra), a concretagem do novo espaço está programada para a próxima semana, com previsão de conclusão em até dois dias após o início dos trabalhos.
Apesar do prazo inicial de 12 meses para conclusão da obra, a mesma deve sofrer atrasos devido a contratempos encontrados no início das intervenções. Funcionários relatam que o solo apresentava irregularidades e trechos alagadiços não previstos, demandando operações de drenagem. A Seinfra não forneceu um percentual exato de progresso, mas os responsáveis pelo canteiro indicam que está em torno de 35%, o que sugere que os outros 65% precisariam ser concluídos em abril e maio para cumprir o prazo estipulado. A próxima fase incluirá a reforma dos toldos e o reboco da parte externa do prédio, conforme anunciado pela pasta.
"Estamos ansiosos pela conclusão desta reforma, e a demora nos deixa um pouco impacientes. Este lugar é muito especial para mim e para a cidade", declara João Batista Silva, 59 anos, que atua como divulgador em frente ao Mercadão há dois anos e frequenta o local há 12 anos.
O investimento total na intervenção é de R$ 6,1 milhões, dos quais R$ 5 milhões são provenientes de um convênio com o Ministério do Turismo, por meio de emenda parlamentar, enquanto o restante é financiado pela contrapartida do município.
HISTÓRICO
O historiador e mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Munir Abboud, esclarece que o Mercadão tem suas origens em outros dois mercados, o que marca uma nova era para o comércio na cidade.
"No século XIX, Campinas contava com o Mercado Novo, na Rua General Osório, e o Mercado de Hortaliças, na Rua Dr. Thomas Alves. O Mercado Novo era muito pequeno, barulhento e situado em uma área sujeita à poluição por lixo. Por outro lado, o Mercado de Hortaliças encontrava-se em frente a uma prisão, o que levantava questões morais. Assim, o Mercadão surge da necessidade de uma revitalização, tanto em termos físicos quanto morais, sociais e estéticos. Sua construção teve início em 1906, sendo concluída em 12 de abril de 1908", explica Abboud.
O historiador relata que a construção enfrentou adversidades desde o princípio. O local escolhido, em frente ao antigo Largo Corrêa de Melo - atualmente Terminal Mercado - era propenso a alagamentos devido à nascente do Córrego Serafim, que foi aterrada para viabilizar a obra.
Mesmo após a conclusão do Mercadão, a área ainda apresentava desafios, servindo como local para descarte de lixo e atividades clandestinas, como prostituição. "Era uma região marcada por comércio ilegal, bares, conflitos, contrabando e até mesmo práticas de curandeirismo", destaca Abboud. Naquela época, o Mercado servia como uma fronteira entre o meio rural e urbano, além de estar próximo à linha férrea.
O edifício, em estilo mourisco inspirado na arquitetura islâmica, foi projetado pelo arquiteto e engenheiro Francisco de Paula Ramos de Azevedo. "Ramos de Azevedo foi o arquiteto mais proeminente do início da República no Estado de São Paulo. Ele era responsável por cerca de 25% do orçamento total da Secretaria de Obras da época. Além do Mercadão, ele também projetou o Teatro Municipal de São Paulo, a Pinacoteca e diversos outros edifícios públicos do Estado", ressalta o historiador.
NOVOS TEMPOS
Aos 57 anos, Umbelina Vassoler, aposentada, é uma fiel frequentadora do Mercadão. "Eu adoro os cheiros, as texturas, sentir os alimentos e conversar com os comerciantes. É poético, traz uma sensação de interior, com o contato humano e os valores mais simples", compartilha ela, que visita o local há mais de três décadas. "Enquanto eu puder, continuarei comprando aqui", afirma decididamente.
Tanto os comerciantes quanto os clientes anseiam por uma nova fase que mantenha a tradição, combinando conforto com identidade.
"Esse lugar, que já é um patrimônio cultural, vai representar para Campinas um espaço mais de cultura que propriamente de comércio", diz Toni. "O Mercadão nunca vai perder sua essência, e se as novas gerações conhecerem esse lugar, o Mercadão será eterno", adiciona Tocão.
"O Mercadão é um patrimônio dos campineiros e muito importante para a valorização do Centro. A realização desta obra era uma reivindicação histórica dos permissionários e de toda a cidade de Campinas. As obras estão indo bem, o Mercadão vai ficar lindo e a população de Campinas merece", pontua o Prefeito Dário Saadi (Republicanos).
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