Solicitação foi feita em outubro pelo Instituto Fazendas Paulistas e abrange toda a área de 692 hectares; medida não impede venda, mas proíbe intervenções que descaracterizam o local sem autorização do órgão federal
Valor histórico da propriedade fundada por Dom Pedro II foi citado como um dos motivos para o tombamento emergencial na carta enviada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Requerimento enviado ao Iphan pelo Instituto Fazendas Paulistas está em análise, mas não há informações sobre quando uma definição será tomada (Kamá Ribeiro)
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) analisa um pedido de tombamento emergencial de toda a área da Fazenda Santa Elisa, pertencente ao Instituto Agronômico de Campinas e que abriga o principal centro de pesquisa do café no país. A solicitação foi feita pela diretoria do Instituto Fazendas Paulistas em outubro. O tombamento não impede o desmembramento e venda de partes da propriedade, medida que pode ser adotada pelo Governo de São Paulo após a conclusão dos estudos em andamento, mas proíbe qualquer intervenção física que possa descaracterizar o local sem uma autorização do órgão federal, ligado ao Ministério da Cultura.
Na carta enviada em 16 de outubro ao superintendente do Iphan no Estado de São Paulo, Danilo de Barros Nunes, os diretores do Instituto Fazendas Paulistas alegam que os avanços científicos e econômicos na área agrícola do Brasil, resultantes das pesquisas desenvolvidas no local por mais de 100 anos, justificam o pedido feito ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Além disso, o valor histórico da propriedade, criada por Dom Pedro II no século 19, é outro ponto que corrobora o tombamento emergencial da Fazenda Santa Elisa.
Os representantes do Instituto Fazendas Paulistas também citaram no pedido o artigo número 7 da portaria do Iphan de número 11, de 11 de setembro de 1986, que regulamentou as normas para a instauração de um processo de tombamento. Nela está dito que em caso de urgência decorrente de ameaça iminente à integridade do patrimônio cultural do país, a Coordenadoria de Proteção poderá, excepcionalmente, dispensar a instrução técnica da Diretoria Regional respectiva. Isso poderia acelerar o processo de tombamento de toda a propriedade, que já possui três áreas do interior tombadas como patrimônios históricos pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc), que juntas têm mais de 18 hectares correspondentes à mata e à área florestal da Fazenda Santa Elisa, além de fragmentos de matas remanescentes, incluídos os parques e bosques, que contém áreas de vegetação nativa.
O tombamento emergencial pedido ao Iphan é um procedimento pouco comum, realizado quando há ameaça a um bem que ainda não foi objeto de estudo técnico definitivo para avaliar sua importância cultural. É o que foi feito em 2021 em relação ao Complexo do Ibirapuera, em São Paulo. Na época, o então governador João Dória buscava repassar à estrutura para a iniciativa privada.
A reportagem confirmou que o Iphan está avaliando o requerimento do Instituto Fazendas Paulistas, no entanto não obteve um retorno a respeito do status atual de tramitação do processo.
DISCUSSÃO
Segundo a vice-presidente do Instituto Fazendas Paulistas, a arquiteta campineira Maria Rita Silveira de Paula Amoroso, pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o processo de tombamento é um instrumento de proteção patrimonial e é uma medida para gerar um debate em torno do assunto. “O que nós pretendemos com isso é que possamos discutir essa venda, o motivo, qual vai ser a área, e deixar mais claro todo esse processo e se há a necessidade realmente de comercialização. É uma área fundamental para Campinas, que tem um recurso ambiental muito importante, além de tudo que já foi falado até agora em relação às pesquisas que são desenvolvidas na fazenda.”
O advogado Paulo Braga, especialista em Direito Administrativo e vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Campinas, explicou que se o tombamento for acolhido, mesmo que de forma emergencial, as restrições já são aplicadas. “É importante dizer que o bem ser tombado não impede que ele seja comercializado, ou seja, o Estado pode vender. A única questão é que quem comprar vai ter de arcar com o ônus do tombamento, que é a manutenção das características apontadas no processo do órgão que determinou o tombamento. E, claro, o tombamento provisório pode ser revogado se os técnicos do órgão federal entenderem que não há a necessidade do procedimento emergencial se tornar definitivo.”
A Fazenda Santa Elisa é um instituto de pesquisa da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, que faz parte da Secretaria de Estado de Agricultura e Abastecimento. A Pasta foi procurada para comentar o pedido de tombamento ao Iphan, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem.
HISTÓRICO
O Correio Popular revelou na edição do dia 17 de outubro a possibilidade de comercialização da Fazenda Santa Elisa, algo que envolve uma gleba de sete hectares do centro experimental, denominada São José, que representa pouco mais de 1% da área total de 692 hectares. Esse terreno abriga exemplares únicos de diversas espécies de café, incluindo a população mais antiga do mundo da variedade arábica clonada por cultura de tecidos. Desde 1932 foram desenvolvidas variedades no local. Elas representam hoje 90% do café cultivado no Brasil, líder mundial na produção.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), manifestou-se favorável à venda de áreas subutilizadas da propriedade no último dia 23 de outubro. Ao mesmo tempo, ele defendeu a preservação das áreas onde são realizados estudos científicos.
Na edição de ontem, dia 19, o Correio Popular mostrou que existe uma forte oposição ao tema em várias frentes. Uma delas é um abaixo-assinado criado em defesa da Fazenda Santa Elisa. O manifesto é on-line e defende que a propriedade não seja desmembrada nem vendida, para evitar, na visão dos manifestantes, danos às pesquisas sobre o café e outros temas de estudo, o que poderia acarretar em prejuízos ao meio ambiente e à economia do país. O grupo pede para que o governador de São Paulo cancele os estudos em andamento que abordam a possibilidade de comercialização de partes da propriedade.
Além dessas entidades, assinaram o documento ex-diretores e pesquisadores aposentados do IAC. A iniciativa do abaixo-assinado foi do vereador Gustavo Petta. O documento foi lançado na última quinta-feira, dia 14, e a expectativa é que o abaixo-assinado atinja mil assinaturas nos próximos dias.
Uma das entidades apoiadoras é o Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU). De acordo com o diretor jurídico da instituição, Antônio Alves Neto, mais conhecido como Toninho Alves, a iniciativa do Governo de São Paulo não é novidade. “A gestão Tarcisio de Freitas tem, no período mais recente, aplicado uma política de venda ou entrega dos setores públicos para a iniciativa privada. Tem sido assim na questão do Instituto Butantan, na questão do corte de verbas da educação pública e também do leilão das escolas públicas, feito recentemente. Muito provavelmente outros setores do serviço público trilharão pelo mesmo caminho, porque essa é a cartilha do governo para tentar enxugar a máquina do Estado, como eles dizem,” comentou.
A Associação dos Docentes da USP (Adusp) também assinou o abaixo-assinado. Para a presidente da entidade, professora Michele Schultz, o caso da Fazenda Santa Elisa é emblemático, pois é um centro de pesquisa com mais de um século de trajetória e que gera resultados concretos para a sociedade. “Não à toa, inclusive setores do agronegócio estão denunciando o que o Governo do Estado pretende fazer. Classificar a fazenda como improdutiva é um absoluto desconhecimento de como funciona a pesquisa científica”, opinou.
DÁRIO SE MANIFESTA
O prefeito de Campinas, Dário Saadi (Republicanos), se manifestou publicamente pela primeira vez sobre a possível venda de partes da Fazenda Santa Elisa ontem, dia 19. Em resposta a uma solicitação de posicionamento feita pela reportagem do Correio Popular, o político apoiou a iniciativa do Governo de São Paulo.
Saadi disse que não vê problema com a possível comercialização, pois o governo paulista “ garante que a venda é parcial e preserva área para pesquisa.”
Além disso, o prefeito de Campinas, que é um dos principais aliados do governador Tarcísio de Freitas na Região Metropolitana de Campinas (RMC) e no interior de São Paulo, comentou que “pesquisas de campo podem ser realizadas em parcerias com cooperativas, empresas e produtores rurais”, encerrou.
O vereador Gustavo Petta (PCdoB), presidente da Comissão Permanente de Ciência e Tecnologia da Câmara de Campinas, criticou as declarações de Dário Saadi, classificando como lamentável “que ele não se manifeste em defesa do patrimônio científico ambiental que está no nosso município”. “O prefeito tem que defender a cidade e não concordar com tudo que o governador faz. O governador, nessa proposta e nesse estudo, está ameaçando um patrimônio de Campinas. Nós esperamos que o prefeito reveja essa posição para defender a Fazenda Santa Elisa e a preservação desse patrimônio tão importante e tão querido pela população.”