Ex-pesquisador da Embrapa aponta os caminhos para o agronegócio
O pesquisador e escritor Evaristo de Miranda, que durante 43 anos atuou na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) (Alessandro Torres)
O Brasil tem de continuar a investir na tropicalização de culturas (adaptação de um produto importado para as condições locais) para reduzir a dependência das importações e ampliar as atividades do agronegócio. A avaliação do pesquisador e escritor Evaristo de Miranda, que durante 43 anos atuou na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), órgão responsável por transformar a agricultura nacional no que é hoje, líder das exportações do país. É um quadro muito diferente da realidade de 50 anos atrás, quando o Brasil era um importador de alimentos.
"Tem duas coisas que precisamos continuar fazendo, que é o melhoramento genético e o investimento em pesquisas que compete ao Estado fazer, não interessa ao setor privado", afirmou ele nesta entrevista concedida a convite do presidente-executivo do Correio Popular, Ítalo Hamilton Barioni. Miranda estimou que em cinco anos o Brasil deverá atingir a autossuficiência na produção de trigo e até mesmo exportador em função da tropicalização da cultura, com plantio hoje nos Estados de Roraima, Ceará, Alagoas e Goiás. "O que fizemos foi um trigo de primeira, com muita qualidade, cheio de proteína", explicou, referindo-se às pesquisas desenvolvidas pela Embrapa nessa área.
Ele se aposentou no início de 2023, quando deixou cargo de diretor da Embrapa Territorial, em Campinas. Engenheiro agrônomo com mestrado e doutorado em Ecologia pela Universidade de Montpellier, na França, é autor de centenas de artigos e de 56 livros, publicados em diversos idiomas, muitos sobre a agropecuária e outros sobre a humanidade. Miranda se apresenta hoje como alguém que gosta de mostrar o campo para a população urbana, citando, por exemplo, o solstício ocorrido na última quinta-feira (20) e como está relacionada com as festas juninas, a cultura e a história brasileira. Ele ainda aborda outros temas, entre eles a polêmica em torno da necessidade ou não da importação de arroz após as enchentes no Rio Grande do Sul.
O solstício é um fenômeno astronômico, mas com implicações religiosas, na produção de alimentos, festividades. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre isso.
Uma coisa simples que a gente precisa ter em mente é que a Terra gira em torno do Sol, como os outros planetas, e tem um eixo de rotação que a faz girar em torno dela mesma. Se esse eixo fosse perpendicular a esse plano, nós não teríamos estações, todos os dias teriam a mesma duração o ano todo e haveria um grande gradiente de temperatura entre a Zona Equatorial, que seria mais quente, até os polos. Esse eixo é inclinado a 23 horas e 27 minutos, isso dá origem a tudo o que vamos falar, e fica paralelo a ele mesmo nesse giro. Isso é o que determina a existência das estações e a ocorrência de quatro fenômenos, um a cada três meses. São dois equinócios e dois solstícios. Para quem está na Terra, as crianças nas escolas não deveriam ser corrigidas sobre isso, o Sol anda, tudo depende do ponto do observador. Quem estivesse fora do sistema solar teria uma visão diferente dessa do que se ensina nas escolas. Esse fenômeno do solstício é muito bacana de ser observado, daria para usar muito nas escolas, na vida, no cotidiano. Os agricultores observam isso, mas quem mora na cidade acabou perdendo a capacidade de observar a natureza. A primeira coisa que poderia dizer sobre esse fenômeno é que o Sol nunca nasce no mesmo lugar. Nasce a Leste, mas onde ele nasceu hoje, não nasce amanhã. Durante o outono, ele nasce a Leste, mas cada vez mais ao Norte nesse deslocamento aparente. Chega um momento, nesse movimento do Sol, que ele para. Solstício é isso, sol sistere, Sol parado. Ele para e começa a voltar para trás. No dia 20 de junho (última quinta-feira) ocorre isso (a entrevista foi concedida no dia 17).
Como esse fenômeno pode ser observado?
Há milhares de anos o homem observa esses quatro fenômenos. O Sol anda, depois para e depois volta a andar, passa sobre a cabeça das pessoas e vai na direção do Sul. Nós temos no Brasil um observatório, o de Calçoene, no Amapá, que tem mais de 2 mil anos. Eu falo que o Stonehenge é o Calçoene da Inglaterra. São rochas enormes furadas por um povo que, provavelmente, foi dizimado pelos tupis, apesar de ser mais evoluído do que eles. Essas rochas permitem observar os solstícios, que podem ser vistos a olho nu. Olhando pela janela lateral, como diria Beto Guedes, da varanda, é possível observar aonde o Sol nasce e se põe a cada dia. Sempre a Leste e a Oeste, mas nunca no mesmo lugar. No dia 20, ele vai no máximo desses deslocamento, é quando ele traça o círculo mais baixo que a gente pode observar. Quem tem uma janela face Norte, verá a luz entrar lá no fundo da sala. Ele estará a 23 graus e 27 minutos no Hemisfério Norte. O Sol estará a pino em Taiwan, onde, ao meio-dia, os postes não têm sombra. Depois estará a pino na China, Índia, Emirados Árabes, Egito, Argélia, Mauritânia, depois nas Bahamas, Sul dos Estados Unidos, México e Havaí. A linha que ele traça no chão, esse caminhar dele no dia 20, a gente chama de Trópico de Câncer. Há essa coisa de ano bissexto, tem ano que cai no dia 20, 21, 22, em outro lugar, mas depois ele irá voltar e fazer tudo ao contrário. No dia 20 temos o dia mais curto do ano para quem está no Hemisfério Sul, é uma derrota da luz, a iluminação está perdendo para as trevas. A noite é cada vez mais longa. O bacana é que, o que pareceria a vitória da noite, é a vitória da luz, pois, no dia seguinte, os dias começam a aumentar de novo. Por exemplo, se o leitor marcar observar no domingo ou mesmo na segunda-feira, ainda ele está muito perto, e marcar um ponto, quando for em dezembro, quando for o solstício de verão, perceberá que o Sol estará em outro ponto. No dia 21 ou 22, ele estará a pino no Hemisfério Sul, em cima da cidade de São Paulo, quando percorrerá o Trópico de Capricórnio. Isso está marcado em várias rodovias paulistas "aqui passa o Trópico de Capricórnio". Ele também corta um pedacinho do Norte do Paraná, quando é o último dia em que o Sol pode ser visto no fundo de um poço. O Sol nunca passa a pino em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e grande parte do Paraná, lá sempre tem sombra.
Qual a relação do solstício com a humanidade?
Para nós, no dia 20 de junho, ocorre o solstício de inverno, o inverno austral. Na Europa, Estados Unidos, é o solstício de verão, o verão boreal. Todo os povos sempre festejaram essa data. Para eles lá, em Roma, na Grécia, no Egito Antigo, é verão, estão no auge das colheitas, acabaram de colher o trigo. Era uma data muito festejada porque trazia também uma mensagem de renovação, queimavam muita coisa, móveis e outras coisas velhas. O fogo tem esse duplo significado muito forte, que é iluminação e purificação, o que explica a realização das fogueiras. O cristianismo, herdeiro do judaísmo, sempre teve um calendário cósmico. A páscoa é fixada em função do equinócio. Os cristãos não pegaram as festas pagãs e usaram. É claro que eles ressignificaram muitas festas pagãs com as festas cristãs. Até para marcar o não-paganismo, a Igreja nunca fez festa no dia 22, sempre três dias antes ou depois. São José é comemorado em 19 de março, Jesus nasceu em 24, São João é em 24 de junho, não exatamente no equinócio. É para não marcar qualquer coisa solar, culto ao deus Sol, algo desse tipo. O bacana nessas festas, que são muito fortes na Europa, é que quando os jesuítas, que para a época tinham visão muito avançada, vieram para o Brasil, diziam que não estavam trazendo nada de fora para o índio. Eles não estavam vindo anunciar uma coisa que os índios desconheciam, revelar um Deus que os índios não sabiam.
Qual a ligação do solstício com a festa junina?
Os jesuítas diziam que esse Deus já estava dentro do índio, e iriam apenas fazê-lo despertar e explicar melhor. Os jesuítas logo se dedicaram a aprender a língua do índio, não ensinar o português. Hoje em dia, você vai estudar tupi-guarani, a gramática que vai se usar é do Padre Anchieta, criada em 1530, 1540. Eles trouxeram as essas festas ressignificando dentro do calendário daqui. O nosso calendário já de colheita, na Europa é de início de colheita por causa das diferenças de clima. A festa junina é ligada ao solstício tem tudo a ver com o índio, pois a gente como milho, batata-doce e amendoim. Os pratos típicos são desses produtos, milho assado, cozido, pipoca, curau, munguzá, canjica, batata-doce assada, batata-doce cozida, paçoca. A festa junina tem uma culinária própria, profundamente indígena. Essa inculturação que os jesuítas fizeram deu certo. O interessante é que se perdeu grande parte disso na Europa, mas é forte no Brasil. A própria música de acordeon, de quadrilha, que é de origem francesa, se perdeu por lá e é forte aqui. O solstício está associado às festas juninas e acho que podemos fazer um paralelo com o Carnaval, a grande festa urbana no Brasil, em grande parte do país, pelo menos, e São João é grande festa rural. Só que esse rural invade a cidade na festa junina. Nessa época, o campo toma conta da cidade. Os arraiais montados ao lado das igrejas, praças públicas, condomínios e empresas, com as barraquinhas, arcos de bambu, bandeirinhas, as pessoas colocam chapéu de palha, camisa xadrez. É uma visão estereotipada, mas é o campo que invade a cidade e com essas relações de compadrio, que é tão bonito nas festas juninas.
O senhor costuma falar também sobre as possíveis aplicações do solstício no ensino. Como é isso?
A sombra também é algo bacana de se observar. Agora é o final de semana das sombras longas. Se observar as sombras dos postes, traves de quadras, casas, pessoas no mesmo horário em dias diferentes, verá que elas começarão a encolher. Se for em Campinas, quando for lá pelo dia 9, 10 de dezembro, não vai ter sombra. Se essa sombra, na escola, mostrasse para as crianças, poderia se ensinar geografia, história, matemática, ciências, um monte de coisa. Uma coisa simples é, com uma régua de trigonometria, medir a altura trave e a sombra dela. Com isso, dá para saber a latitude do local. O cálculo é muito simples. É o que o mestre Faras (médico, astrônomo, astrólogo e físico espanhol João Faras, que integrou a expedição de Pedro Álvares Cabral) fez em Santa Cruz de Cabrália (Bahia). Ele desceu à terra somente no dia 28, fez as medições e calculou a latitude Sul, 17 graus, errou por coisa de 60 quilômetros, algo que pelas condições da época é nada. A carta dele é pouco comentada, mas escreveu uma coisa que usava muito quando dava aula na USP (Universidade de São Paulo). Vou falar do jeito, mas ele falava que, naquela época, assim como acontece hoje, havia pessoas com experiência empírica e os que estudaram cientificamente o assunto, os dois são importantes na agricultura. Os marinheiros ficavam perturbando esse mestre por terem experiência, os mapas, mas ele alertou que ficariam 90 dias só navegando, água. O mestre Fara perguntou: vamos saber quem vai aonde a gente está? Vocês com a experiência ou eu com o conhecimento. Ele era o maior salário da Corte, o maior salário do reino de Portugal era para o cosmógrafomor, o matemático. Se a criança já passou pelo ensino fundamental, também poderia fazer um relógio solar. Em Campinas, há alguns em praças públicas. Em Araras, tem um mais impressionante, uma praça inteira é um relógio solar. Simplificando, o pauzinho do relógio que projeta a sombra para saber a hora tem que ter seu ângulo calculado. Tem que saber a latitude para fazer isso. É a primeira coisa que os jesuítas faziam quando chegavam em um local: um relógio solar. Duas escolas que combinarem, uma em Campinas e outra em São Paulo, podem calcular a circunferência da Terra. O solstício é um tema que poderia ser muito bem aproveitado nas escolas.
Aproveitando a conexão, nós sabemos a importância da Embrapa na questão da agricultura tropical, que hoje segura a balança comercial do país. Muitos desafios já foram vencidos, mas quais ainda precisam ser superados?
Tem duas coisas que precisamos continuar fazendo, que é o melhoramento genético e o investimento em pesquisas que compete ao Estado fazer, não interessa ao setor privado. É o caso do melhoramento do feijão, que as empresas não tem interesse, mas a Embrapa, o Agronômico (Instituto Agronômico de Campinas) fazem. O melhoramento genético é no sentido de tropicalizar as culturas. A Embrapa participou ativamente da tropicalização da soja, que precisa de muito sol, muita luz. Isso determina a floração e o desenvolvimento da planta. Recentemente, ela tropicalizou o trigo, que está sendo plantado em Roraima, Ceará, Alagoas, Goiás e vai ter cada vez mais. Levou 17 anos para desenvolver essa variedade. Poderia ter sido menos se o setor privado brasileiro não tivesse pedido um trigo rico em proteína. O que fizemos foi um trigo de primeira, com muita qualidade, cheio de proteína. O Brasil consome mais ou menos 12 milhões de toneladas de trigo por ano. Produzia 5, em 2019, agora estamos produzindo 9,5. Nós vamos se tornar não somente autossuficiente, mas exportadores rapidamente, algo em torno de cinco anos. A Embrapa quer continuar trabalhando temas estratégicos que ao setor privado naturalmente não compete, ser o limpatrilhos, em coisa que ninguém está vendo, que hoje não são importantes, e trabalhar em rede em nível mundial. A Embrapa avançou muito em edição genômica, hoje a transgenia ficou para traz, ninguém fala mais.
Essa polêmica em torno da importação de arroz por causa das enchentes no Rio Grande do Sul. A compra no exterior é necessária?
É normal o Brasil exportar e importar arroz todo o ano. Há toda uma questão logística, época do ano, dólar etc. O Brasil exporta todo ano algo em torno de 1,5 milhão de tonelada de arroz e importa a mesma quantidade, em torno de 60% do Paraguai. Economicamente, é o melhor que tem que fazer. As cooperativas de produtores de arroz têm compromisso com as empacotadoras. Se perguntarem para a indústria, tem falta de arroz para colocar no supermercado? Não. Se por acaso ela notar que tivesse risco de faltar arroz, lá na frente, por volta de outubro, as indústrias do Sul vão comprar mais do Paraguai.
O senhor de aposentou da Embrapa e está atuando em que área?
Hoje, eu tenho um grande prazer em escrever. Eu escrevo um artigo quinzenalmente para a Revista Oeste sobre o agro; faço comentário no Jornal da Band toda segunda feira; faço um programa no Agro+, o Brasil Verde, onde entrevisto pessoas da agricultura e uma das grandes audiência do canal; e trabalho em um novo livro. Estou focando na comunicação com o mundo urbano, que desconhece o rural. Faço artigos pensando no que a dona de casa vai ler, o motorista de táxi vai ler. Também dou muitas palestras falando da sustentabilidade da agropecuária brasileira.
Talvez agora o senhor tenha mais tempo para hobby. O que costumar fazer?
Tenho vários hobbies. No esporte, um que faço é o badminton, jogo todo dia de manhã, se não houver vento. Uso a quadra de tênis do condomínio. Estou viajando mais ainda do que viajava, agora sem tantos comprometimentos. Estou procurando conhecer lugares que gostaria e antes não foi possível. O outro é escrever, estou escrevendo mais.
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