ENTREVISTA

Educação é a última proteção da criança na periferia, diz Perry Krassner

Estadunidense, fundador do Colégio Tigrinhos escolheu Campinas para colocar em prática a "arte de dar aula"

Luis Eduardo de Sousa e Manuel Alves Filho
30/06/2024 às 09:47.
Atualizado em 30/06/2024 às 09:47
O sociólogo Perry Krassner, juntamente com sua esposa, a psicóloga Mari, concederam uma entrevista ao Correio Popular a convite de Ítalo Hamilton Barioni (Rodrigo Zanotto)

O sociólogo Perry Krassner, juntamente com sua esposa, a psicóloga Mari, concederam uma entrevista ao Correio Popular a convite de Ítalo Hamilton Barioni (Rodrigo Zanotto)

Perry Krassner, prestes a completar 70 anos, é uma figura de destaque na comunidade educacional de Campinas. Estadunidense de origem, Krassner escolheu Campinas para viver em 1983, quando veio ao Brasil para lecionar na Escola Americana de Campinas. Durante três anos, ele atuou como docente na instituição, experiência que foi crucial para a fundação do Colégio Tigrinhos, uma renomada instituição de ensino que já acumula 34 anos de história na metrópole.

Inicialmente, a escolha de ser professor foi uma estratégia de guerra - ou melhor, de paz. Recém- formado em Nova Iorque, Krassner optou pela docência para evitar ser convocado para os campos de batalha do Vietnã, onde os Estados Unidos estavam em conflito. Com o passar do tempo, ele percebeu que a educação era sua verdadeira vocação e que "a educação é para todos".

Formado em sociologia, Krassner se especializou em ensino e deixou seu país. Antes de chegar ao Brasil, ele passou por Honduras e Equador. No Brasil, a terra do samba, conheceu sua esposa, Mari, a quem atribui o principal apoio de sua vida. "Sem ela, não seria o que sou", afirma. O casamento também foi um fator determinante para sua permanência no país: "hoje, sou mais brasileiro que muitos brasileiros".

Perry e Mari compartilham a paixão pela educação e a visão de uma formação centrada no desenvolvimento humano antes da performance acadêmica. Ela, psicóloga, e ele, professor, lideram juntos a marca Tigrinhos, que inclui também uma instituição filantrópica, a Tigrinhos Comunidade. O casal se dedica a formar educadores sociais que atuam em comunidades carentes.

Sobre vida, gostos, gestos e, principalmente, educação, Perry e Mari compartilharam detalhes de sua trajetória e seu encontro com Campinas em uma entrevista ao Correio Popular na última semana, a convite do presidente-executivo do jornal, Ítalo Hamilton Barioni.

Em que ano o senhor nasceu?

Perry - Nasci em 23 de dezembro de 1955, no subúrbio de Nova Iorque. Tenho quatro irmãs, mas apenas eu da família vivo no Brasil.

Oque o motivou a escolher o Brasil?

Perry - O Brasil foi uma consequência de outras decisões. Na época que fiz faculdade e me formei nos EUA, quem se tornava professor não ia para o Vietnã, então muito homem decidiu lecionar para fugir da guerra. Em razão disso, não havia tantas vagas de trabalho. À época, eu jogava futebol americano, então os empregos que me ofereciam eram em escolas muito marginalizadas onde precisava de mão firme. Então eu saí dos EUA em 1979, após ter me formado como sociólogo, como professor e concluído um master em "arte de dar aula". Ou seja, minha especialidade é dar aula. Fui para Honduras, onde fiquei dois anos, depois para o Equador, onde lecionei na Escola Nacional de Quito. Por lá, conheci uma pessoa do Brasil que me falou que o Brasil era o melhor país do mundo para viver se tivesse dólar. Cheguei aqui na alta inflação, em 1983, para ser professor da Escola Americana de Campinas.

Sua primeira atividade profissional na cidade foi essa?

Perry - Sim. Eu adoro esportes, então também fui treinador de basquete, um pouco de vôlei e até de atletismo, logo quando cheguei. Depois, fiquei três anos na Escola Americana, conheci Mari, minha esposa - inclusive acabamos de celebrar 40 anos de casamento: é minha parceira em tudo, sem ela essa jornada não seria possível. Enfim, depois de três anos na Escola Americana, abri uma escola de inglês no mesmo bairro. Mari foi para faculdade e se formou em psicologia. Quando terminou, relatou que queria evitar os problemas infantis antes que acontecessem. À época, ela foi trabalhar com o ginasta Carlos Henrique Silvestre, que fazia algo nesse sentido. Assim, os dois faziam isso e eu tinha minha escola de inglês. Aos poucos, fomos incrementando artes, literatura, até que um dia os pais nos questionaram: "por que não abrem uma escola?". Foi aí que começamos com o Tigrinhos, em 1990.

Onde funcionou a primeira unidade?

Mari - Começamos na (avenida) Júlio de Mesquita, depois fomos para (rua) Barão de Ataliba, avenida Iguatemi e aí, em 2015, passamos para Lumen Christi (rua no Jardim das Paineiras, onde o colégio funciona atualmente).

Perry - A escola é diferenciada. Temos a filosofia do "Eu sou, eu posso" (I am, i can, no inglês). Parece uma metodologia fácil, mas é extremamente difícil, porque você precisa estimular as crianças a terem o potencial delas como seres, com base em quatro pilares: intelectual, físico, emocional e social. Cada criança tem habilidade em cada um, e nenhuma vai ser boa em todas. Eu, por exemplo, posso ter um dom social, mas não físico, ou intelectual, mas não emocional. Portanto, é preciso estimular, e a escola desafia a fazer isso. Consideramos também que somos podados pela sociedade em várias frentes. Veja as mulheres, por exemplo, são podadas de várias formas. "Vai sair com essa roupa?", "por que não cria uma família ao invés de estudar?", são coisas que elas escutam, enquanto os homens são ensinados que "não podem chorar". Para nós, cuidar não é só "olhar", é comer bem, prover saúde, enfim, cuidar de todas as possibilidades físicas.

O que o levou a escolher Campinas?

Perry - Porque um amigo me falou muito bem do Brasil e eu vim para a Escola Americana de Campinas. E graças a Deus que foi Campinas, pois sou muito mais natureza do que cidade, como São Paulo, por exemplo. Gosto muito do campo, até hoje moro em sítio. Voltando à escola, a gente foi desenvolvendo essa coisa do "eu sou, eu posso" e, como sou sociólogo, acho importante entender que a educação é direito de todos, não apenas de pessoas que podem pagar. Mesmo quando abrimos o Tigrinhos, eu trabalhava como coordenador pedagógico para um projeto das Irmãs Carmelitas, no São Marcos. À época, inclusive, ganhamos uma premiação do Correio Popular por incentivo à leitura, algo que gosto muito. Se sei ler, sei procurar emprego, sei me cuidar, posso viajar sem dinheiro e posso voltar. A instituição fechava as portas por 15 minutos, todos os dias, e quem estava dentro dela era obrigado a ler, independente da condição. E assim seguimos com o Tigrinhos.

Qual é a origem do nome "Tigrinhos"?

Mari - Quando eu estava me formando em psicologia, no último ano fiz clínica, e eu tratei de um senhor de 60 anos que era psicótico. Me lembro de ter ficado muito impressionada por ver como era difícil alguém se recuperar naquela idade. Na época, falei para minha supervisora que queria trabalhar para evitar que as pessoas cheguem à fase adulta com esse tipo de desvio psíquico. Foi então que decidi que queria algo para trabalhar o desenvolvimento da criança, a autoestima, enfim. Trabalhando com Henrique Silvestre, eu com a psicologia e ele com a educação física, fomos percebendo a necessidade de ter uma filosofia, ao mesmo tempo em que íamos percebendo a mudança das crianças. Aí nós escolhemos a filosofia "I am, I can", da Dra. Grace Mitchell - que inclusive tivemos o prazer de conhecer pessoalmente. À medida que a gente foi vendo esse desenvolvimento, reparamos que era importante transformar em uma escola mesmo. Consequentemente veio o nome "Tigrinhos", que é uma coisa que a criança se identifica: "i am a tiger".

Perry - Nos EUA, todas as escolas têm nome de grupos, e tigre é uma coisa que a criança gosta, é rápido, ágil. Penso que a criança gosta mais de dizer que estuda no Tigrinhos que no Jardim da Infância I, no Jardim da Manhã ou em qualquer outro jardim. Sou tigrinho, depois vou ser tigrão, depois super tiger. Estimula. "Eu pertenço a umgrupo legal".

Qual é a faixa etária das crianças atendidas?

Perry - De quatro meses a 15 anos - do berçário ao nono ano. Nossa escola é uma "childfriendly school". Eu não tenho uma escola que a criança tem que entrar, eu tenho uma escola que se adapta à necessidade das crianças. Até quando estou fazendo visita com pais, se tem uma criança chorando eu paro a visita, trato a criança e depois volto à conversa. O mais importante na escola é a criança.

Há uma carência de professores especializados na arte de ensinar, ou seja, que consigam simplificar o conteúdo para facilitar a compreensão dos alunos sem causar estresse?

Perry - Conto-lhe um caso. Quando eu estava no São Marcos, a coordenadora da instituição chegou até mim e pediu, "Perry, os alunos estão com problema em matemática, eles acham que são burros, que não conseguem aprender. Preciso que resolva isso para mim". Bem, eu não estudava matemática desde o 2º colegial, porque nos EUA a gente estuda aquilo que escolhe. Mas aí coloquei em prática o meu ensinamento, que é a arte de dar aula. Pegamos a tabuada, por exemplo, algo que o aluno acha que nunca vai conseguir, e simplificamos. Montamos um grupo chamado "vencer" e estudávamos as tabuadas de três em três. Se o aluno aprende o 0, 1 e 2, ele já venceu. Assim sendo, vai atrás de 3 e 4, e assim vai. Em duas semanas todo mundo sabia tabuada. Você treina menos e gasta mais tempo treinando o que você não sabe. Na escola, o importante é estimular a competência do aluno. O aluno precisa pensar. "Se eu gosto de mim, vou cuidar de mim, prover o que faz bem para mim. Não vou me drogar, não vou me envolver com um parceiro que maltrata". Esse é o nosso objetivo. Você pode ser muito inteligente, mas se estiver infeliz, vai procurar preencher a lacuna em algum lugar, nem sempre bom.

O senhor considera que aprendeu bem o português?

Perry - Não sei, estou aprendendo até hoje (risos). Erro algumas palavras até hoje. Aqui no Brasil, sempre vivi apenas com brasileiros, comecei a namorar Mari, então fui inserido na cultura. E é muito difícil viver em um país que você não fala a língua. Hoje, dizem que sou mais brasileiro que muitos brasileiros, por trabalhar na comunidade e conhecer uma realidade que muita gente não conhece. Além disso, Mari adora música, então à cultura brasileira estou bem inserido.

Como é o processo de seleção dos seus professores?

Perry - Hoje é mais fácil. No começo a gente era muito fora da caixinha e não dava muito certo. Gasto muito tempo treinando eles, dou aula até hoje para professores. Nossos estagiários, por exemplo, têm aula comigo de como dar aula, porque não adianta o estagiário ser uma mão de obra barata apenas para levar criança ao banheiro, ele precisa aprender algo. Por isso, sigo dando aula. Todo mundo tem a filosofia (I am, I can) como base. Tem professores muito bem qualificados que não ficam na escola, porque não se adaptam a "I am, I can". Os incomoda demais.

Mary - É difícil dar aula envolto por uma filosofia que você não adota para si mesmo, para a sua vida. Essa é a pior parte para esses professores. Para aplicar a filosofia, precisa viver no dia a dia.

Perry - Muito professor que ainda leciona na escola viu a minha transformação como pessoa, ao longo desses 18 anos, 20 anos que estão comigo. Então eles também sabem que podem mudar. É preciso ter uma autocrítica, reconhecer quando uma aula não foi boa. Assim sendo, você volta para a próxima aula motivado, consegue fazer mudanças significativas. Esse é o importante.

Como os alunos respondem ao método de ensino aplicado no Tigrinhos?

Perry - Eu sou muito chorão, muito emotivo, antes de mais nada. Digo isso pois meus alunos me dão muito exemplo. Primeiro que eles têm uma consciência social que eu não tinha na idade deles; uma empatia admirável. Uma vez por mês estudamos um valor ético, moral ou social. Exemplo, temos uma aluna que tem deficiência de mobilidade. Um dia eu estava bebendo água, batendo papo no corredor e vi que ela chegou e deixou a bolsa em um canto. Veio um aluno, pegou a bolsa dela e levou para a sala. Vendo aquilo comecei a chorar e subi no oitavo ano para dar os parabéns. Aí contei o que tinha assistido e eles responderam, "não, Perry, nós temos uma escala, cada dia umaluno é responsável pela mochila da colega". Tinha até um substituto, para o caso de alguém faltar. Recentemente, por exemplo, eles sozinhos tomaram a iniciativa de acumular doações para o Rio Grande do Sul. São respostas fascinantes ao nosso trabalho.

Quantos alunos a escola atende atualmente?

Mari - Atualmente, uns 330.

Como conseguem fazer tudo isso funcionar?

Perry - Primeiro, todo mundo tem que respeitar. Ninguém levanta a voz, ninguém desrespeita ninguém. No geral, os alunos são muito prestativos, muito carinhosos e amigos.

Vocês mantêm contato com ex-alunos que já se formaram e que retornam para compartilhar a importância da filosofia aplicada no Tigrinhos?

Perry - Muitos. Esse ano, por exemplo, 15 deles estavam na festa junina, que foi gratuita para ex-alunos. Ano que vem quero fazer boomerang, ou seja, chamar ex-alunos para contarem o que se tornaram na vida. Quero fazer isso. No nosso nono ano, por exemplo, os alunos sempre ficam nervosos, então é importante ter esses exalunos para voltar e tranquilizá-los, mostrar que são muitas as opções possíveis para a vida.

E quanto ao trabalho social desenvolvido pela escola?

Perry - Hoje, Tigrinhos é uma ONG. Mari e eu somos donos da marca, mas a "Tigrinhos Comunidade" é a ONG sob a qual a escola Tigrinhos está alienada. Quando eu estava na periferia, percebi que a qualidade da educação era muito baixa. Os educadores sociais são muito mal remunerados, mal respeitados, trabalham em condições extremamente difíceis, mas têm tanto amor por essas crianças, que acabam por ser a última rede de proteção antes da marginalidade. Valorizo muito o educador social, então, quando saí da comunidade, decidi educá-los: todo mundo falou que eu era louco. Primeiro que não é uma educação oficial e não tem remuneração. Mas foi possível, sim, na medida em que passamos a valorizá-los. Hoje, já temos mais de 31 cursos, que são oferecidos aos sábados, com cargas horárias de 4 a 24 horas.

Atualmente, quantas pessoas estão envolvidas nessa atividade filantrópica?

Mari - Na Tigrinhos Comunidade, só esse ano, mais de 500 educadores sociais já passaram.

Perry - Nós temos um funcionário pago, que é coordenador da Tigrinhos Comunidade, que faz a ligação com as entidades. A gente conseguiu fazer algumas parcerias, estamos com quatro cursos no Senac, conseguimos bolsas de 50% em pedagogia para os alunos em uma faculdade, enfim, é umtrabalho de muita dedicação. Esse ano, pelo menos 1 mil educadores sociais devem passar pelos cursos, que conferem certificados. É muito legal, eles fazem novas amizades, vão vendo que não estão sozinhos, que são muitos e são solidários. Hoje, são mais de 70 instituições ativas, mais de 100 cadastradas e eu acho que esse ano teremos mais de 30 cursos. Quando comecei isso, não achei que tomaria essa proporção. Meu sonho, agora, é levar para outra cidade. Os custos são mínimos e os benefícios são enormes.

A escola Tigrinhos oferece bolsas sociais?

Mari - Sim, temos uma margem de bolsas que precisamos oferecer. Abrimos um edital sempre em outubro e vamos preenchendo as bolsas. 20% são sociais e, para isso, não pode ter mais de um salário mínimo per capita na família. Nós aceitamos 100% e pagamos o resto, porque a educação é umdireito de todos.

Como é a integração entre alunos bolsistas e não bolsistas?

Perry - A maioria das escolas particulares que oferecem bolsas sociais dividem os alunos. Nós não fazemos isso. Em nossa escola, os alunos se sentam um ao lado do outro, e entendemos que diferentes histórias de vida, de contexto e situação enriquecem a formação de todos os que estão ali. Comem a mesma comida, professor igual, uniforme igual e está dando certo.

Mari - Quando começamos esse processo, uma preocupação que eu tinha era a integração de diferentes classes sociais no mesmo ambiente. Quando se faz isso, sabe-se que algumas coisas podem acontecer. O mais importante para nós foi estimular os valores de sociedade, de igualdade social e educacional para todos, e à medida que os problemas foram surgindo, fomos abrandando junto com as famílias com base nesses valores. Quando você coloca situações diferentes no mesmo lugar, precisa explicar porque está acontecendo e mostrar que aquilo é importante para todos. Até agora, estamos sendo bem sucedidos.

Perry - Quando recebo um pai, já explico que nossa escola não tem preconceito de cor, religião, aparência, vestimenta, nada. Muitos deles não voltam, porém, outros ficam aliviados.

Mari - A visão do aluno não é a mesma do adulto, e o pai não entende isso. Isso precisa ser considerado.

Além do extenso trabalho com o Tigrinhos, sobra tempo para hobbies?

Perry - Sim, amo esportes. Gosto de basquete, não perco os jogos americanos.

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