O que sempre me encantou, aqui na Chácara da Barra, é a dobra dos ventos. As brisas das tardes às vezes parece que se corporificam como algo quase suavemente sólido, como veludo; e, na sua sagrada missão de balançar os galhos das sibipirunas, amaciando folhas, é como se a mão do imponderável tivesse dimensões plenas de carícias. Quando, faz muitos e muitos anos, me recolhi a este tugúrio que me protege das intempéries brabas com raios e trovões, gostava de ficar olhando as aragens que vinham beijar as folhas das plantinhas em meiga nesga de jardim que há ao lado da garagem. E fazia isso, certa manhã do século passado, quando vi algo estranho. Eram dois pequenos arbustos que começavam a sobressair em meio às pétalas das margaridas. Como tinha ficado vários meses fora a percorrer meus recantos encravados na Amazônia profunda, onde nasci, conclui que os novos habitantes do jardinzinho tinham sido ali colocados por algo além de minha às vezes até um pouco exagerada imaginação. Resolvi consultar o vizinho de então, que conhecia tudo sobre vegetais; e perguntei o que poderiam ser as duas mudas no chão fértil.
- Ora, amigo – ele passou o indicador nas folhinhas – você tem aqui duas goiabeiras.- Duas o que? Goiabeiras? – Arregalei os olhos.
- Exatamente. E se você trouxer um arborista ele não vai me desmentir
- Mas como? Quem pode ter plantado isso, na minha ausência?
- Eles – o vizinho apontou para o alto.
- Os deuses? – Levantei as sobrancelhas.
- Não, amigo, os passarinhos. Que são, muitas vezes, emissários deles.
- E como fazem isso?
- São as sementes das goiabas que eles comem. Algum bichinho fez cocô aí e agora você tem duas goiabeiras.
Como disse, isso ocorreu faz muitos e muitos anos, e agora os presentes que algum passarinho me deu, mandados pelos deuses, se erguem, enormes, ao lado do muro, como duas catedrais verdes que os já citados ventos da Chácara da Barra adoram acariciar. E ao longo desse tempo todo, as duas benditas árvores se incorporaram de tal forma em minha vida, a ponto de adorar ver o sol cintilar em suas folhas; ou delas, em dias de chuva, ficar olhando o descer das gotas d'água. Sorrisos sim, não lágrimas dos céus.
Mas o que queria contar é o que está no título desta crônica, as safras. Fui descobrindo, aos poucos, que elas embutem certo ritual. E a primeira sacação ocorreu quando novamente voltei de viajem, após longa ausência. Era inverno, o avião que me trouxe pousou em Viracopos à noite e, já na abertura das portas da aeronave, fomos envolvidos pelo ar gelado que me remeteu à Sibéria. A surpresa maior, porém, estava reservada para o instante em que o táxi que me levou à casa parou na porta. Tomei um susto ao, no lusco fusco da escuridão e das estrelas, verificar que as duas goiabeiras estavam praticamente sem folhas. Não completamente peladas, como ficam os plátanos, no inverno; mas, digamos, descarnadas. Meu santo Deus, pensei, morreram.
Pela manhã, ao acordar, minha primeira preocupação foi olhar como estavam as árvores. Realmente, quase secas, e o chão, sob elas, coberto de folhas. Na secura da estação, rapidamente peguei a mangueira e passei a borrifar os troncos.
Os resultados disso, porém, foram exíguos. E só mais adiante quando despencaram as primeiras chuvas da Primavera, fui percebendo que o viço das amadas árvores voltava. E, na continuação, meus olhos se encheram de luz ao verificar que, nas pontas dos galhos, brotavam pétalas. Que, mais adiante, se transformaram em frutinhos. Era a safra.
Bom, amigos, estamos em janeiro de 2021, e as duas goiabeiras estão carregadas de frutos. Como ainda permanecem verdes, a festa que proporcionarão ao amadurecer está por começar. Com a chegada, primeiro, das maritacas. Depois, dos passarinhos que se alimentam de frutos; que muitos plantarão, largando seus cocôzinhos em outras nesgas de terra, em algum lugar.
Aliás, quando vi pela primeira vez as maritacas dei um berro as chamando de curicas. Imediatamente peguei o telefone e liguei para o escritor e pianista Antonio de Pádua Báfero, membro da Academia Campinense de Letras, o mais completo ornitólogo que conheço; e falei:
- Amigo, minhas goiabeiras estão carregadas de goiabas e de curicas.
- Goiabas sim – ele respondeu – mas curicas só lá na Amazônia, onde você nasceu. Aqui, são maritacas.
Ontem, ao abrir a janela do quarto logo cedo, comecei a apurar os ouvidos na espera do berro de alguma das verdes aves. Mas ainda é cedo, a safra mesmo está apenas nos seus, vamos dizer assim, prolegômenos. Mas, tão logo escute o primeiro berro das maritacas, ligarei para o escritor Báfero.
- Amigo, elas chegaram.
- Então – ele respondeu – faça bom uso do seu amor a elas. Pois nova safra, agora, só em 2022... Ah, sim, me traga uns frutos bem madurinhos. Vou fazer para a Maria Inês uma geleia como ela nunca comeu na vida...’’