Mesmo inédita, a vitória de um candidato de esquerda nas eleições presidenciais da Colômbia fez ecoar pela América do Sul uma memória política recente. Ao derrotar o populista Rodolfo Hernández na votação de domingo, 20, o ex-guerrilheiro Gustavo Petro se tornou o mais novo representante do que alguns analistas já consideram uma "nova onda rosa" - referência ao movimento político e eleitoral que levou líderes de esquerda ao comando dos principais países do continente na virada do milênio. Segundo analistas, trata-se de uma "mudança de maré" provocada pelo descontentamento com governantes anteriores.
"Havia um cansaço dos eleitores em vários desses países, em que governavam partidos mais à direita. Mas não podemos minimizar esta guinada a apenas uma mudança de governo. Parece haver uma mensagem sobre certas urgências, que foram amplificadas pela pandemia, e que estão alinhadas a postulados de esquerda", disse ao Estadão o cientista político Eduardo Dargent, professor da PUC Peru.
A onda rosa original, cujo marco inicial foi a eleição de Hugo Chávez, na Venezuela, em 1998, é como especialistas chamam a inversão do rumo político no continente após anos de hegemonia de governos neoliberais. No auge, entre 2009 e 2010, oito países eram presididos simultaneamente por políticos de esquerda ou centro-esquerda, como Luiz Inácio Lula da Silva, Tabaré Vazquéz (Uruguai), Cristina Kirchner (Argentina), Michelle Bachelet (Chile) e Evo Morales (Bolívia).
Com a vitória de Petro, chega a seis o número de países atualmente dirigidos por esquerdistas: Argentina (Alberto Fernández), Bolívia (Luis Arce), Chile (Gabriel Boric), Peru (Pedro Castillo) e Venezuela (Nicolás Maduro). Desses, apenas Maduro representa uma continuidade - sendo o herdeiro político do governo chavista que está a frente da Venezuela desde o fim dos anos 90.
De acordo com Eduardo Dargent, professor da PUC Peru, os últimos processos eleitorais sul-americanos indicam uma "mudança de maré" na política regional motivada principalmente por demandas estruturais, além de um descontentamento dos eleitores com governos anteriores.
Entre o ciclo eleitoral anterior e o atual, uma série de revoltas populares eclodiu pelo continente - algumas delas, antes mesmo da chegada do coronavírus - criando um nível de pressão intenso para os representantes eleitos, até derrubando presidentes.
Na Bolívia, Evo Morales foi forçado a renunciar após um polêmico processo eleitoral em que forçou os limites legais para tentar um quarto mandato consecutivo em 2019, sendo sucedido interinamente pela conservadora Jeanine Añez - que posteriormente foi presa pelo que a justiça boliviana julgou como uma tentativa de golpe.
No mesmo ano, Lenín Moreno, então presidente do Equador, precisou mudar a capital de Quito para Guayaquil, após massivos protestos de grupos indígenas contra o fim de subsídios que aumentaram o preço dos combustíveis. No Chile, o aumento da passagem do metrô de Santiago mergulhou o país nos protestos mais violentos do Chile desde o fim da ditadura Pinochet. A situação só foi controlada quando Sebastián Piñera, em articulação com a oposição, aceitou realizar um plebiscito sobre uma nova constituinte. A Colômbia enfrentou intensos protestos contra o governo Iván Duque, enquanto o Peru enfrenta uma crise prolongada, com quatro presidentes desde 2020.
"A política funciona com base em um pêndulo: ora ele pende para a esquerda, ora pende para a direita. Isso acontece, normalmente, pelo estresse que o governo enfrenta durante a gestão em momentos em que, por razões diversas, não consegue dar conta dos desafios de atender as demandas do povo, e a maior parte da América do Sul passa por essas alternâncias", afirma Rodrigo Gallo, coordenador da Pós-graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP).
"Recentemente, vimos a ascensão de governos politicamente mais conservadores, com agendas econômicas neoliberais. A eleição desses líderes correspondia a uma visão, por parte dos eleitores, de que a superação dos problemas demandava mudanças nos rumos políticos. Contudo, essas gestões não responderam a todos os desafios da forma desejada pelas populações. Vivemos uma crise pandêmica, que por sua vez agravou a situação econômica dos países sul-americanos. Isso pode explicar as escolhas por candidatos de esquerda nesse atual ciclo eleitoral", acrescentou Gallo.
Aprofundamento da polarização
Uma característica que aproxima os processos eleitorais do atual ciclo eleitoral no continente é a polarização eleitoral. Ao contrário da "maré rosa" do começo dos anos 2000, os principais rivais de muitas das candidaturas de esquerda foram políticos considerados populistas ou "outsiders" - que tentaram unir a defesa de valores conservadores e a doutrina econômica neoliberal.
A exceção da Bolívia, onde Luis Arce venceu o moderado ex-presidente Carlos Mesa ainda no 1° turno, a tônica nos outros países foi de disputa polarizada e contagem voto a voto. No Peru, Pedro Castillo precisou vencer a disputa nas urnas e as acusações de fraude eleitoral levantadas pela rival, Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori. No Chile, Gabriel Boric suou para superar José António Kast, um político de extrema direita considerado por muitos como antissistema.
Antes, em 2019, Alberto Fernández derrotou o então presidente Maurício Macri - um empresário que havia sido eleito quatro anos antes com status de renovador da política nacional - com a formação de uma frente ampla de esquerda, que levou à vice-presidência Cristina Kirchner, ex-presidente e figura polarizadora da política argentina.
"Dentro de uma lógica de polarização, que minou as possibilidades de "terceiras vias", as disputas basicamente envolveram dois grupos - e, agora, as críticas contra os outsiders têm pesado para os resultados. Nos casos de candidatura a reeleição, a narrativa de ser 'o diferente' não funciona mais. Já existe uma gestão para ser julgada pelos eleitores", disse Gallo.
Voto na urna, oposição no governo
Apesar do sucesso eleitoral nas últimas eleições, a nova safra de políticos da "onda rosa" não têm encontrado vida fácil para impor suas agendas programáticas. Reformulações de gabinete, como no Peru, crises internas e derrotas em eleições legislativas, como na Argentina, e baixa popularidade, como no Chile, mostram que a nova chance dos eleitores às esquerdas latino-americanas tem um limiar de tolerância menor que outrora.
"Os problemas da América Latina são estruturais, grandes, profundos e não passam apenas por uma mudança de constituição, por uma mudança de quem governa", afirmou Eduardo Dargent, que mencionou o caso de Gabriel Boric, no Chile. "O que Boric está vendo no Chile, por exemplo, é parte por ter sido da frente de crítica, apontando os problemas, e de repente se encontrando com eles. Uma coisa é fazer campanha e outra é governar", acrescentou.
Na Colômbia, um dos grandes desafios do presidente eleito será diminuir a desigualdade social no país e redistribuir a renda, duas de suas principais bandeiras. Para economistas, conforme mostrou a enviada especial do Estadão à Colômbia, Fernanda Simas, primeiro é preciso voltar aos índices pré-pandemia da covid-19 no país para depois pensar em erradicar a pobreza, por exemplo, e isso se consegue com medidas de curto prazo, como programas de assistência social, seguidos de mudanças estruturais que dependem da confiança do mercado e de acordos no Congresso.
"Para quem chegou ao poder, o desafio é passar da crítica para uma solução - e provavelmente veremos limites estruturais muito poderosos ao que esses governos podem fazer", diz Dargent.