A semana que marcou a apresentação de Cuca e sua despedida do Corinthians após uma classificação dramática sobre o Remo, pela Copa do Brasil, trouxe à tona uma nova realidade que norteia a sociedade brasileira no que diz respeito a valores, comportamentos e atitudes. Apesar da carreira vencedora, o treinador se tornou alvo de protestos e manifestações ao ver sua trajetória atrelada a um clube que sempre se vinculou às causas sociais.
Condenado pela Justiça da Suíça por manter relação sexual com uma menina de 13 anos em um hotel, juntamente com mais três atletas do Grêmio em 1987, o treinador pagou o preço por proclamar inocência e ver seu álibi ruir com a divulgação de evidências de sua participação no caso (processo judicial confirmou que havia sêmen do técnico no corpo da vítima) que ficou conhecido como "Escândalo de Berna". Em contraste com o abraço solidário liderado pelo goleiro Cássio e seus companheiros após o triunfo na decisão por pênaltis da última quarta-feira, na Neo Química Arena, o treinador de 59 anos agora faz parte de um capítulo superado, mas não esquecido por boa parte da nação corintiana.
Um indicativo dessas mudanças já havia alcançado os holofotes em dois casos ainda frescos na memória envolvendo astros do futebol. Condenado em última instância por violência sexual, o atacante Robinho se viu contra a parede diante da opinião pública. Pivô de um escândalo recente, o lateral Daniel Alves segue preso há mais de três meses em Barcelona sob acusação de agredir sexualmente uma mulher em uma casa noturna na cidade espanhola.
Da Espanha para o Brasil, São Paulo protagonizou mais uma mostra de que os tempos mudaram no que diz respeito ao machismo, que, por muito tempo, imperou no futebol. No Corinthians, Cuca sentiu na pele a ira de uma sociedade transformada, que se utilizou das redes sociais para amplificar o descontentamento pelo seu histórico.
Em sua estreia, diante do Goiás, um texto postado pelas atletas do futebol feminino do clube fortaleceu ainda mais o movimento "Respeita as Minas", uma das bandeiras da agremiação em defesa da mulher.
A antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora visitante da Universidade Brown, em Rhode Island, nos Estados Unidos, explicou ao Estadão alguns fatores que explicam essa mudança de comportamento e postura em relação a uma transgressão ocorrida há mais de três décadas.
"Não existe mais espaço para acomodação ao silêncio. A proteção a esses homens não cabe mais. Se o que aconteceu há 37 anos passou silenciado naquele momento, é quase um dever de testemunho, no tempo presente, contar de outro jeito. Embora o direito possa dizer que prescreveu o crime, ele não prescreve no campo da ética, no campo vivido", afirmou a especialista à reportagem.
Questionada se as personalidades do esporte estariam deixando o status de "intocáveis", ela foi além. "Não diria só no esporte. Isso está acontecendo na arte, na música, na vida acadêmica. Eles não são intocáveis. A intocabilidade de uma magia de determinado espaço não se estende para uma vida de existência fora da lei, de abuso sexual, de racismo. Essas atitudes estão sendo vistas."
Psicólogo do esporte e com passagens em clubes da primeira divisão como Palmeiras, Botafogo e América-MG, Eduardo Cillo afirmou que um conjunto de fatores contribuiu para que o caso ganhasse tamanha proporção. "Estamos passando por uma mudança cultural com relação ao tratamento dispensado a mulheres de uma forma geral. Outro ponto é que o Corinthians é identificado com causas sociais há muito tempo, desde a democracia corintiana. O caso teve esse tempero a mais também pelo papel que o clube tem em relação ao futebol feminino. Seria uma incoerência fechar os olhos nessa discussão sobre as bandeiras que a agremiação levanta tradicionalmente", disse Cillo que responde pela coordenação do departamento de psicologia do Comitê Olímpico do Brasil (COB).
Na sua avaliação, o fato de Cuca ter construído uma carreira consagrada no Brasil, ainda mais em uma modalidade que concentra o maior número de adeptos no País, serviu para dar mais projeção a esse caso. "Quem trabalha e vive no futebol, seja jogador ou outro profissional, acaba tendo muita exposição e visibilidade. Isso traz benefícios, mas também responsabilidades. O que quer que façam, vira modelo de comportamento. Se fizerem algo que seja prejudicial a outras pessoas, não é bom exemplo. Mas, se fizerem algo positivo, ajuda a eliminar preconceitos", diz.
AMEAÇAS À NAMORADA E DISPENSA NO SÃO PAULO
O caso de exposição negativa dos jogadores teve um exemplo prático na última sexta-feira. O atacante Pedrinho teve o seu contrato rescindido pelo São Paulo por um motivo que nada teve a ver com seu desempenho dentro de campo.
A diretoria do Morumbi optou pelo rompimento após a revelação de mensagens onde o jogador ameaçava a ex-namorada, Amanda Nunes, de morte. Afastado desde março, quando a vítima fez um boletim de ocorrência após uma briga, o atleta perdeu espaço e prestígio no clube. O fim do vínculo reforça ainda mais a importância da conduta dos atletas também fora de campo.
Outro caso a ganhar repercussão na mídia aconteceu na capital paranaense na semana passada. Assim como Cuca, o agora técnico Antonio Carlos Zago teve de enfrentar protestos de torcedores do Coritiba, seu novo clube, por percalços cometidos no passado. Em 2006, época em que defendia o Juventude, o então zagueiro foi expulso por dar uma cotovelada em Jeovânio, do Grêmio. Na saída, ao discutir com o adversário, apontou a cor do próprio braço. Ele pegou 120 dias de gancho pela agressão e mais quatro jogos de suspensão por acusação de racismo.
Na chegada à nova casa, o técnico deu um depoimento sobre o caso à TV do clube para tentar colocar um ponto final na questão. "Talvez tenha sido em cima do excesso de vontade que tinha dentro de campo. Foi um episódio em que fiz, paguei e faz parte do passado. Então, quanto a isso aí, estou tranquilo com a minha consciência, principalmente em se tratando das coisas que envolvem o futebol hoje em dia", afirmou Zago.
APOIO DA CATEGORIA
Em meio às críticas e condenações pelo escândalo de Berna, Cuca ganhou apoio da categoria nesse momento delicado que atingiu sua carreira. A Federação Brasileira de Treinadores de Futebol (FBTF) manifestou solidariedade ao técnico. O ex-jogador Zé Mário, que defendeu Flamengo, Vasco e Fluminense na década de 1970, e preside a entidade, classificou o episódio como "covardia".
"Inacreditável que o Corinthians contrate um profissional e outros funcionários do próprio clube comecem com essa onda (em referência à nota de protesto das jogadoras do time feminino). Se o Cuca errou no passado, ele já pagou, sem dúvida, por todos esses anos vividos. Quem não errou que jogue a primeira pedra".
Zé Mário disse já ter mandado mensagem ao treinador e colocou a entidade à disposição. "Isso é uma coisa pessoal e não sei o que ele vai precisar. No caso de pedir ajuda, o advogado é que vai fazer alguma coisa", comentou.
Responsável pela comunicação da FBTF, Roberto Palmieri de Souza, ex-goleiro de Bangu e Botafogo nos anos 80, deu a sua posição como ex-atleta, por meio de um texto publicado em suas redes sociais sobre o episódio envolvendo a saída do Cuca no Corinthians e a chegada de Zago ao Coritiba.
"Todos viram o que aconteceu com o Cuca e com a chegada do Zago como treinador do Coritiba. A quem interessa levantar essa questão? Alguém buscou um fato de 37 anos atrás e condenou o Cuca pela segunda vez através do cancelamento nas redes. O Zago, 17 anos depois, volta a ser acusado de racismo", diz parte do texto. Na publicação, o goleiro diz ser contra estupro, racismo e ser a favor da condenação. No entanto, ele prega serenidade nos julgamentos dos envolvidos.
"Condeno o estupro e o racismo e sou à favor da presunção da inocência, onde somos inocentes até que se prove o contrário. Sou a favor da condenação, colhemos o que semeamos, mas sou à favor do perdão. Todos podemos errar, mas temos o dever de buscar o acerto e a empatia que nos permite sentir, cooperar e respeitar o que o nosso semelhante anseia. Sem isso, fica desse jeito aí. É só ódio, filtro e lacração!"