É impossível para a contadora Lea Ethes, de 50 anos, esquecer o que se passou depois de ver seu time, o Internacional, eliminar o São Paulo e ir para a final do Campeonato Brasileiro de futebol feminino. Torcedora daquelas que enfrentam calor e frio para ver suas ídolos de perto, mesmo que por alguns segundos, antes, durante e depois das partidas, ela foi premiada pela insistência com um convite incomum quando esperava as jogadoras do lado de fora do Morumbi.
"Uma das gurias me viu e me trouxe para dentro, para perto do ônibus. As outras jogadoras me cumprimentaram e perguntaram o que eu ia fazer agora? Eu falei 'vou voltar para o hotel' porque tinha de viajar no outro dia. Elas: 'não, tu vais jantar com a gente'", conta Lea sobre um dia memorável.
"Jantei com todo o time do Inter, pessoal empolgado, óbvio, com a final, com aquele ambiente de alegria e tudo mais. Foi o modo de elas agradecerem ao apoio que dei no início, a gratidão delas, apesar de elas já terem me visto em outros jogos também", prossegue a torcedora, tocada com o que viveu há menos de um mês.
O caso de Lea é sintomático para entender que a relação entre a torcida e as jogadoras do futebol feminino é muito diferente na comparação com a modalidade masculina. Se os atletas são blindados, cercados por assessores e empresários, as atletas costumam ser consideravelmente mais acessíveis ao público. Tiram fotos, dão autógrafos e até chamam para jantar como uma maneira de agradecer o apoio que recebem.
A maior proximidade dos fãs de seus ídolos é vista de maneiras diferentes pelas pessoas envolvidas no futebol feminino. Há um reconhecimento de que isso é possível porque, embora tenha crescido muito em popularidade, a modalidade ainda está longe de movimentar tantos torcedores quanto sua versão masculina. De qualquer forma, a comunidade também identifica uma cultura de receptividade já bem assimilada pelas atletas.
"A modalidade em si sempre foi muito acessível, então acho que se criou uma cultura em todas desde muito nova de ser essa pessoa que conversa com o fã, vai lá e tira foto", opina Ary Borges, atacante do Palmeiras e da seleção brasileira, em entrevista ao Estadão. "Se tem dez pessoas ou quarenta mil, vai ser comum todo mundo ser mais acessível, ter essa proximidade com a torcida."
"É emocionante saber que meu trabalho inspira alguém e ter essa proximidade com a torcida me faz querer sempre ser melhor e trabalhar mais", afirma Gabi Portilho, atacante do Corinthians.
Gerente do futebol feminino do Inter, Leonardo Menezes endossa o discurso das atletas. "Não ter todo o apelo popular que há no futebol masculino faz com que seja facilitado o acesso às jogadoras, por questões logísticas e de segurança, especialmente".
Joelma, 25 anos, é uma das torcedoras que podem se orgulhar de dizer que tem uma relação de proximidade com as atletas. Ela é cadeirante e está sempre no alambrado dos estádios esperando uma atenção das jogadoras do Corinthians. "Minha relação com o feminino é maior. Os jogadores são quase inacessíveis", aponta. "Elas representam meu maior sonho. Hoje, estou na cadeira, mas apoiando o futebol feminino do Corinthians sempre. Tenho um amor gigante por elas", resume a torcedora. Essa paixão motiva qualquer torcedor. No caso das meninas do futebol, ela pode ser maior por causa das aberturas com as jogadoras.
"Todas elas me conhecem. Tenho foto com praticamente todas", conta, orgulhosa. Joelma lida com uma doença degenerativa que afeta seus nervos e que a colocou em uma cadeira de rodas. A doença é um obstáculo, mas não a impede de acompanhar o Corinthians. "Vou aonde o Corinthians for", enfatiza a fã, que assiste aos jogos desde que o time tinha parceria com o Audax.
A relação entre torcida e times femininos tem outro lado que vem ganhando forma nesta fase de crescimento. A maior repercussão de jogos, ainda que restrita aos decisivos ou clássicos, vem gerando um aumento da cobrança por resultados, que pode ser vista um pouco nas redes sociais. Nos estádios, contudo, o apoio ainda fala mais forte. A torcida palmeirense, por exemplo, cantou e aplaudiu as jogadoras após a eliminação para o Corinthians na semifinal do Brasileirão, mesmo diante de uma goleada por 4 a 0.
"Mesmo com o placar adverso, contra nosso maior rival, durante todo o jogo eles cantaram, nos apoiaram. Durante o apito final, foi mais legal ainda o que eles fizeram, fiquei muito feliz de ver isso", comenta Ary Borges. "Óbvio que alguns comentários em rede social são normais, mas para mim é tranquilo. A atleta tem que estar aberta a receber elogios e críticas. A gente entende o peso que é um Corinthians e Palmeiras. Pelo resultado que teve, é óbvio que teria uma cobrança, para mim é super normal. Fora isso, não tive nada."
CONTRASTES
O futebol feminino goza de mais prestígio, apoio e incentivo em comparação com um passado recente, o que fez a modalidade evoluir no Brasil. No entanto, há muito a se fazer ainda. As premiações e salários em relação ao que ganham os homens são baixas e muitas atletas ainda são amadoras - dividem os treinos e jogos com uma segunda ou até terceira ocupação porque o futebol lhes dá pouco financeiramente.
"Todo mundo cobra as jogadoras, mas poucos ajudam", reclama a psicóloga Roseli Sônia Silva, enquanto incentiva das arquibancadas do Canindé a sua nora Thais Gabrielle, atacante da Portuguesa, em duelo com o São José, pelo Campeonato Paulista. "No masculino é melhor, mas é porque eles são profissionais. Tem incentivo, estrutura e só se dedicam ao futebol", considera.
Os 41.070 torcedores que o Corinthians atraiu na final do Campeonato Brasileiro contra o Inter, na Neo Química Arena, batendo o recorde de maior público de um jogo feminino de clubes no Brasil e na América do Sul, empolgam jogadoras, técnicos e dirigentes que trabalham com o futebol feminino, mas é uma realidade restrita a grandes times ainda, com investimentos importantes e patrocinadores conhecidos.
Em partidas de pequenos e médios clubes, ingressos ainda são gratuitos para atrair mais gente e, mesmo assim, o público é reduzido. Era possível contar os torcedores que foram ao Canindé ver a Portuguesa levar 5 a 1 do São José semana passada. Um deles era Kaverna, torcedor-símbolo da Lusa, de 82 anos, que persegue a equipe há mais de 50 anos.
"Acompanho sempre a Portuguesa, não interessa se é homem ou mulher. O que vale é a camisa", diz Kaverna, justificando sua presença no Canindé naquela tarde quente de fim de inverno em São Paulo. "Não conheço nenhuma menina. É a camisa que importa para mim. Venho em jogo do sub-20 também". Essa paixão foi "descoberta" pelos clubes recentemente. O torcedor vai apoiar a bandeira do seu time em qualquer modalidade. Mas ainda de forma tímida, pontual.
Até clássicos, a depender do apelo, não são capazes de atrair tantos fãs. Prova disso é que Corinthians 0 a 2 contra o Palmeiras, pela sexta rodada do Campeonato Paulista, foi visto por 4.345 torcedores nas arquibancadas do Nogueirão, em Mogi das Cruzes. Cabe lembrar que o time alvinegro jogou com reservas porque três dias depois disputaria a final do Brasileiro. E a partida ocorreu fora da cidade.
"Eu vejo qualquer jogo do Corinthians, pode ser até no Free Fire", conta a assistente financeira Jéssica Morais, de 26 anos. "A torcida acompanha menos o feminino, mas as meninas são muito melhores do que os homens. Elas entregam tudo. Dão mais de si", destaca.
Acompanhada do filho Samuel e da amiga Ana Júlia, ela viu as reservas do Corinthians perderem por 2 a 0 para o Palmeiras. Sua ida ao estádio foi facilitada pela curta distância, já que mora em Mogi das Cruzes. Pelo ingresso, pagou R$ 12.
Mesmo que nem todos os jogos reúnam grandes públicos, as conquistas alcançadas até o momento são bastante valorizadas por quem viveu tempos ainda mais difíceis, caso da lateral-esquerda Tamires, multicampeã no Corinthians e na seleção brasileira.
"Sou da geração que viveu estádios vazios, que só familiares iam nos apoiar. Hoje estar aqui sendo reconhecida e tendo a torcida por nós só demonstra que o futebol feminino não vai ser mais o que era antes, que hoje estamos conquistando nosso lugar, e que as meninas que desejam ser atletas profissionais podem sonhar, acreditar e continuar trabalhando que elas vão conseguir chegar lá também", salienta Tamires.
ABISMO FINANCEIRO
A distância que separa o futebol masculino do feminino é evidenciada pelos valores das premiações. O campeão do Brasileirão masculino vai faturar R$ 33 milhões, enquanto o título da edição feminina rendeu R$ 1 milhão ao Corinthians.
"Quando eu falo em igualdade de premiação, não digo que seja o mesmo valor do masculino, mas um valor que seja respeitoso com a modalidade. Entendemos que se vendem muito mais produtos no futebol masculino. Estou falando só de respeito com a modalidade", contestou Gabi Zanotti, craque do Corinthians.
O valor da premiação seria menor. Até dias antes da final do Brasileiro, a CBF planejava pagar somente R$ 290 mil ao vencedor. A pressão fez a entidade subir o montante às pressas e prometer aumentar mais para 2023. "Para a próxima temporada, vamos melhorar a premiação das competições, fomentar o crescimento nos Estados e investir na formação de toda a cadeia esportiva do feminino, com cursos e preparação de treinadores, auxiliares, executivos", garantiu o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues.
"O papel da CBF é dar protagonismo às mulheres, fazer o futebol crescer de uma forma orgânica e encher mais estádios por todo o País."