Dias após o primeiro turno das eleições na Argentina, mais cidades reportaram filas e falta de combustíveis devido à falta de dólares para importação e por temores anteriores ao pleito de uma nova desvalorização da moeda. O governo, que no momento tenta se manter no poder com a candidatura de Sergio Massa, admitiu o problema, mas nega que haja um desabastecimento generalizado. Ainda assim, se reuniu hoje com as companhias para buscar uma solução.
Um dia após as eleições de domingo, os preços da gasolina e do diesel nas bombas da empresa estatal YPF aumentaram 3%, apesar de um acordo de congelamento de preços que as petroleiras têm com o governo. A expectativa é de que as empresas Axion, Shell e Puma Energy também aumentem seus preços em breve, seguindo outros dois aumentos que já haviam feito desde agosto.
O resultado é um desabastecimento de combustíveis no interior do país, principalmente no norte. Mas postos de Buenos Aires já começaram a sinalizar falta de produtos e limites para abastecer os carros. O motivo é uma soma de fatores: o aumento pós eleições, uma distorção no preço entre atacado e varejo devido ao controle de preços do governo e até um temor antes das eleições de uma nova desvalorização da moeda.
Justamente para conter este temor e uma corrida antecipada aos postos, o ministério de Energia - com aval do ministério da Economia de Massa - celebrou um acordo com as empresas petrolíferas em 18 de agosto, limitando o preço dos combustíveis até 31 de outubro. Ainda assim, as empresas promoveram aumentos, ainda que muito abaixo da inflação.
Filas nos postos
Aos jornais argentinos, vários motoristas relataram uma odisseia para encontrar postos com combustíveis. Em províncias como Salta e Jujuy houve imagens de veículos fazendo filas para abastecer. No norte, empresas de transporte publicaram alertas de preocupação pela falta do combustível para rodar.
Mais perto da capital, na cidade de Mar del Plata, as imagens eram de filas de carros em frente aos postos e locais fechados por causa da escassez. A situação mais grave seria nos postos ligados à estatal YPF.
De acordo com a Bloomberg, há pelo menos três navios-tanque à espera com gasolina e diesel para importação, mas que esperam o pagamento aos fornecedores estrangeiros BP e Gunvor. Ao jornal argentino Clarin, pessoas próximas à YPF disseram que os dólares para pagamentos já teriam sido liberados. O Banco Central não se manifestou.
A situação já vinha se desenhando desde o início do mês, antes das eleições. Temendo uma desvalorização semelhante ou até pior que a promovida em agosto, os consumidores já se apressavam em aproveitar o teto de preços nos postos pertencentes à refinaria estatal. Logo, o efeito chegou às empresas privadas que se viram afetadas pela demanda.
Em nota, a Confederação de Entidades do Comércio de Hidrocarbonetos e afins da República Argentina (Cecha) pediu uma intervenção do governo dizendo que a situação vem se agravando. "O que começou com rupturas de estoque dispersas em regiões ou zonas específicas propagou-se rapidamente com maior intensidade a todos os produtos, por todo o país, gerando ansiedade na nossa atividade e complicações nos consumidores".
"Não temos qualquer interferência na falta de abastecimento adequado de combustível. A nossa atividade consiste em colocar todo o volume dos nossos estabelecimentos à disposição dos clientes e já não conseguimos ter as quantidades necessárias devido a fatores totalmente alheios ao nosso controle", continua o comunicado divulgado nos jornais argentinos.
A confederação então pediu que o governo "arbitre as medidas conducentes à regularização da situação levantada, adotando todos os meios ao seu dispor, que permitam às petrolíferas regularizar o abastecimento dos postos de abastecimento. Todos nós precisamos de combustível e neste momento não há o suficiente para satisfazer a procura".
O governo, porém, nega que haja um desabastecimento. "Não há desabastecimento generalizado. O que aconteceu é que a YPF tem preços um pouco mais baixos, uns 2%, 10 ou 7 pesos mais baixos que o resto, e é por isso que há alguma mudança na demanda de outras marcas para a YPF e isso tem causado algumas faltas de estoque", disse a secretária de Energia, Flavia Royón, em entrevista à Rádio Mitre, ainda no início do mês.
Nesta sexta-feira, 27, Royón se reuniu com os representantes das petroleiras e prometeu liberar os dólares necessários para importação. As empresas acordaram em contratar mais 10 embarcações de combustíveis e em até 10 dias devem ser retomadas as atividades nas refinarias paralisadas, informou o ministério de Energia.
Distorção de preços
Em uma de suas tentativas de conter a fuga de dólares da Argentina - e também controlar a situação econômica até as eleições - o governo peronista celebrou o acordo de preços com as refinarias YPF, Shell, Axion e Puma Energy. Com isso, apesar da inflação próxima de 140%, o preço dos combustíveis sofreu altas menores, em torno de 60%. O resultado, porém, é uma distorção entre o preço nas bombas para os consumidores menores e para os grandes consumidores.
Em geral, o combustível vendido a grandes compradores, como empresas de transporte e setores agrícolas, costuma ser mais barato devido a alta quantidade vendida. Porém, com o acordo de preços, os valores nos postos estavam menores, fazendo com que caminhões também buscassem o produto ali, aumentando a demanda.
"O preço no serviço atacadista deveria valer X menos 10%, para que fosse mais barato que no varejo, mas por intervenção governamental custa X mais 25% ou 30%. Isso gera uma migração de clientes atacadistas, que buscam carregar diesel e gasolina nos postos, onde o preço é mais barato", explicou o setor atacadista ao jornal La Nación.
Outra consequência da distorção é que cada vez mais moradores de outros países limítrofes com as cidades argentinas tem cruzado a fronteira em busca do combustível mais barato.
Além disso, embora a Argentina seja um país produtor de petróleo e grande parte de seu uso interno de gasolina seja refinado localmente, parte do diesel é importado, com volumes em torno de 15% a 20%. Com as restrições de acesso a dólares impostas pelo Banco Central, as importações têm sido mínimas.
A média do preço do litro da gasolina na Argentina tem girado em torno de 86 centavos de dólar, quando já deveria ter ultrapassado o 1 dólar. Já em outros países os preços costumam ser de US$ 0,93 no Paraguai, US$ 1,14 no Brasil, US$ 1,36 no México, US$ 1,47 no Chile e US$ 1,95 no Uruguai.
Efeito nas eleições
A falta de combustíveis é mais um capítulo da crise econômica argentina. Além da inflação de 138% interanual, do dólar sendo vendido a mais de 1.000 no mercado paralelo e a pobreza acima dos 40%, a Argentina enfrenta um problema grave de importações.
Com as reservas líquidas negativas em valores estimados em US$ 10 bilhões, o Banco Central tenta conter a fuga dos poucos dólares que gira no mercado interno. O resultado é um controle nas importações, o que vem gerando falta de produtos com componentes importados, desde alimentos a remédios e carros.
A crise intensificou depois que o governo promoveu uma desvalorização de 20% no valor da moeda, colocando ainda mais pressão em empresas que precisam pagar suas dívidas crescentes com os parceiros comerciais. O resultado foram dois meses com inflação de dois dígitos.
A situação, porém, parece respingar pouco no candidato peronista, que já se mostrou capaz de contornar as críticas ainda que seja o ministro da Economia. "Quem votou em Sergio Massa apesar da situação inflacionária, da desvalorização da moeda, tudo isso, vai continuar votando, seja por medo, por desespero, por qualquer motivo", afirma o cientista político da Universidade Católica Argentina Fabian Calle. "Não acho que essa situação mudará o cenário eleitoral."
"E outra questão que o beneficia é que seus adversários, Javier Milei e Patricia Bullrich, se entretiveram mais brigando entre eles do que atacando ao Massa. Mas acredito que nas próximas três semanas a estratégia será colocar o foco no fato de que ele é o responsável pela Economia e o administrador de fato do governo", completa.
Embora seja o ministro da Economia, Massa investiu sua campanha em se colocar como alguém que não tem culpa pela crise. Ele afirma ser ministro há um pouco mais de um ano e meio, sendo que a culpa seria dos quatro anos de Alberto Fernández e Cristina Kirchner. Foi com este mote que ele terminou com 36% dos votos no primeiro turno, indo ao segundo com o libertário Milei que levou 30%.
"Ele foi capaz de jogar com essa estratégia de dizer que não era parte do governo, e com a passividade da oposição, sua vida ficou facilitada", afirma Calle.