Tenho um amigo muito espirituoso que, há anos, sempre que me encontra, me aperta a mão e constata, grave e definitivo: “Rapaz, a coisa 'tá feia”. Ele não se refere a nada em particular; antes, faz troça com aquelas figuras mais velhas que, alarmadas com o noticiário sobre o déficit da balança comercial brasileira ou o avanço da Al-Qaeda no Sudão, repetem o bordão como um mantra que tudo sintetiza. “A coisa 'tá feia’.”Pode ser culpa do Sol, mas ultimamente tenho tido a impressão de viver em um filme de Glauber Rocha, no qual um líder político, em delírio, lança mão de malabarismos retóricos para justificar como de primeira necessidade coisas que, definitivamente, não são. Ao fundo, um país em convulsão, violento, incendiado, em franco descontrole.Há alguns dias, a TV e os jornais exibiram a imagem de um adolescente negro que, acusado de praticar assaltos no Rio, foi espancado por moradores e preso a um poste com uma tranca de bicicleta. A cena é de uma carga simbólica tão óbvia quanto assustadora: remete ao pelourinho, no qual os escravos fujões, desobedientes ou “indolentes” eram castigados.Houve uma grita, polarizada entre aqueles que justificavam a ação como um exemplo da profunda insatisfação com a incapacidade do poder público em garantir os merecidíssimos bem-estar e segurança dos cidadãos, e os que encaravam a atitude como um sintoma de que voltamos à barbárie — se é que algum dia saímos dela.Me coloco neste último grupo, e já me preparo para a saraivada (menos, Rodrigo, você não tem tantos leitores assim, diz a voz na minha cabeça) verbal disparada por aqueles que lançam mão do batidíssimo argumento: “Está com pena dele? Leve-o para sua casa”. Ou do também desgastado “Você já teve um parente morto em um assalto? Uma filha estuprada?”.Sinto raiva, sim, até hoje, da dupla que surgiu à minha frente assim que estacionei em frente ao dentista e me ameaçou com uma arma para que eu entregasse o carro. Até hoje (e lá se vão pelo menos três anos), desejo que eles tivessem perdido o controle do veículo em disparada e se arrebentado contra um poste. Assim como desejo cruel punição, se não nesta vida pelo menos em um conjectural além-túmulo, para todos os que intencionalmente prejudicaram as vidas de outras pessoas.Mas isso é algo pessoal, e sinto dizer, estamos em condição de inferioridade para com o “inimigo”. E essa inferioridade é um efeito colateral do estado democrático que a civilização levou séculos para consolidar. O bandido, como chamamos essa figura ameaçadora e sem rosto, por própria definição não se atém a leis. Nós, cidadãos de um estado democrático, temos que nos ater a elas, por mais injusto que isso soe e por mais frustração que isso gere. Se não, a barbárie se generaliza. Como sintetizou Eliane Cantanhêde em sua coluna na internet: “Se cidadãos e cidadãs se tornam mais cruéis e mais desafiadores que os próprios bandidos, onde vamos parar?”.Eu disse “estado democrático”? Pensando bem, talvez um dia este País consolide na mente de seus habitantes uma cultura democrática e tolerante como em países da Europa (eu ia incluir os Estados Unidos nesse rol, mas aí lembrei dos Republicanos e da indignação de muitos americanos com o comercial poliglota da Coca-Cola exibido durante o Super Bowl). Por enquanto, a boçalidade tem mostrado suas garras por aqui com uma frequência preocupante. Não falo dos ataques homofóbicos, nem de deputados-pastores que desejam ardentemente substituir a constituição pelas “Sagradas Escrituras”, nem do risco de morte que hoje está embutido no exercício profissional do jornalismo. Me refiro a algo que parece piada, mas é muito sério: a família do ator Fábio Porchat, do célebre humorístico 'Porta dos Fundos', foi ao Congresso Nacional pedir que o Estado garanta a sua integridade física. O motivo: ele vem recebendo ameaças por causa de um quadro em que parodia a arbitrariedade policial. O referido quadro não é, absolutamente, fantasioso. Apenas inverte a conhecidíssima situação em que PMs (são cariocas, mas poderiam ser de qualquer lugar do País) achacam, ameaçam e aterrorizam um suspeito. Porchat disse que a piada tem como alvo os policiais corruptos, não a instituição policial. Mas teve gente que não entendeu, ou não quis entender, ou vestiu a carapuça. Em qualquer um dos casos, isso me amedronta muito.Rapaz, a coisa ‘tá feia.